
Joana Mortágua: "O meu sentimento revolucionário
está mais vivo do que nunca"
Natural de Alvito, no Alentejo, foi lá que começou a gostar de ouvir fado, que se tornou uma militante política e uma alma inconformada perante a injustiça e a desigualdade. Esta é Joana Mortágua.
Criar proximidade com o entrevistado não é tarefa fácil quando temos diante dos nossos olhos um ecrã de computador estilo “Muro de Berlim”. Circunstâncias da pandemia. Neste caso, na conversa intimista com o SATÉLITE, a proximidade esteve literalmente à distância de um click.
“Estejam à vontade, tratem-me por tu”, diz ela. Mas quem é ela? — é Joana Mortágua, natural de Alvito no Alentejo, licenciada em Relações Internacionais, marxista, deputada do Bloco de Esquerda desde 2015, feminista, statement girl no Parlamento e na vida. Conhecemos-lhe a voz aguerrida e o rosto sério, que surpresa surpresa, são usados só para as intervenções das cadeiras da Assembleia que assistimos desde o canal parlamento. Para conversarmos sobre a vida basta cadeira do escritório— objeto-chave que, acreditamos, ser o responsável pela alteração da postura. Ou então talvez seja por estarmos a assistir pelo “canal Zoom”.
A voz revela-se calma e o rosto sorridente. Na estante tem os livros da Amália. No pensamento, a ideia de que deve ser difícil ser a Madonna. Na bagagem várias influências— de Karl Marx, as teorias. Do pai, o ativismo político que começou aos 15 anos na Associação Justiça e Paz. Do avô, a paixão pelo fado. Dela própria, o empreendedorismo de quem, em criança, pediu para construir uma passadeira à frente da escola e de quem, em adolescente, teve uma discoteca para os amigos em casa dos pais.
Joana Mortágua é tudo isto. Nela cabem todas estes interesses, opiniões, facetas e histórias. A força da sua presença acabou por derrubar, em segundos, o temido Muro de Berlim.

Fotografia: Ana Mendes
Como é crescer numa freguesia pequena como o Alvito?
Alvito é concelho! (risos) Também é uma freguesia. É concelho e sede de concelho. Na verdade, é o segundo concelho mais pequeno do país a seguir a Barrancos… É bom, é fixe. Dá-nos uma liberdade que não tens nas cidades grandes, porque tens, de facto, um sentimento de segurança enorme enquanto estás a crescer, dá-te acesso a muitas experiências.
Eu cresci no campo. Não vivia na vila, vivia numa horta perto da vila. Tens toda uma outra dimensão do que é o mundo. É importante, para mim, porque eu me defino como e faz parte da minha identidade ser alentejana. Isso moldou a forma como vejo o mundo, as pessoas, as relações das pessoas, como vejo a minha cultura, a relação com a terra… E, ao mesmo tempo, também te dá uma dimensão sobre as questões mais políticas, do interior, da falta de acessos públicos, da falta de acesso à cultura, da forma como um conjunto grande de populações está excluído da fruição de muitas coisas…
Agora temos Netflix e TV cabo, mas eu na altura não tinha. O cinema mais próximo ficava a 40 quilómetros, portanto, há aqui uma dimensão de acesso a um conjunto de coisas que é preciso serem pensados enquanto serviços públicos, mesmo os transportes. Se não forem pensados enquanto serviço público, excluem completamente as populações de direitos fundamentais.
Acho que, para mim, foi importante. Não foi tão limitador porque nenhum dos meus pais é alentejano. O meu pai é da zona de Aveiro, de Estarreja. Na verdade, Salreu. A minha mãe é de Lisboa e, por isso, sempre tive família lá. Ia sempre visitar os meus avós, os meus primos e os meus tios e, portanto, também tive acesso aos dois mundos.
Alguma vez sentiste que o Alvito era muito pequeno para ti?
É impossível não sentir isso. Por isso é que quase todos os jovens chegam aos 18 anos e saem. Há várias dimensões de ser demasiado pequeno. Eu gosto muito de Alvito e gosto de lá estar. Nós temos é de aprender a viver com o que isso significa. Isso significa nunca mais ser anónimo na vida. Acabou. Toda a gente conhece toda a gente. Toda a gente sabe o que se passa na vida de toda a gente. Há pessoas para quem isso é insuportável, viver sempre com esse lado B do sentimento de comunidade. Eu vivo relativamente bem com esse lado de sentimento de comunidade, desde que possa ter escapes de viajar e de fazer outras coisas.
O problema é que Alvito é demasiado pequeno para dar emprego e, sobretudo, emprego qualificado. E lá está, para dar acesso a outras coisas a uma geração que já cresceu com outras expectativas e outras experiências. A tal geração mais bem formada do país, que foi a primeira a ter maior formação que a dos seus pais e, portanto, depois é muito difícil compatibilizar as promessas que se fez a essa geração e aquilo que um concelho tão pequeno lhes pode oferecer. O que não quer dizer que não haja aqui alguns twists, porque, ao mesmo tempo, a vida nas cidades tornou-se tão violenta e tão precária que muitas vezes o inverso também vale e aquela dimensão torna-se muitas vezes a solução para quem quer alguma estabilidade e uma vida mais simples, previsível e estável e com maior qualidade de vida e mais barata também.
Portanto, acho que há aqui muitas dimensões que se tocam. Agora, é óbvio que um concelho com pouco mais de três mil pessoas e uma freguesia com mil e tal não têm dimensão para te oferecer um conjunto de coisas que uma cidade tem. Isso tem coisas boas e tem coisas más.
"A minha formação política e a minha consciência política vieram muito de casa."
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Mas voltas lá regularmente, até para conseguir esse sentimento de conforto que falavas?
Vou muitas vezes, porque os meus pais estão lá. Já não tenho aquela dinâmica de faculdade, de ir todos os fins de semana; ou fim de semana sim, fim de semana não. Já não tenho a minha vida organizada lá, mas vou muito. Gosto muito de lá ir. Nem sempre consigo. Agora, por exemplo, não tenho ido por razões óbvias. Quer dizer, tenho ido menos do que gostaria, mas gosto muito de lá estar.

Fotografia: Enric Vives-Rubio/PÚBLICO
És filha de Camilo Mortágua, uma pedra no sapato do regime salazarista. Como é que isso afetou a tua infância? E a tua vida política atual?
Não sei muito bem responder a isso… A minha formação política e a minha consciência política veio muito de casa - mais a consciência política do que a formação, que é uma coisa posterior. A minha filiação com o combate às injustiças veio muito de casa, da história do meu pai e da minha mãe e da forma como pensam e sempre discutiram os assuntos lá em casa.
Claro que a história do meu pai influencia. Seria muito estranho eu ser filha de um resistente anti-fascista e depois crescer para ser militante de extrema direita. Isso não faz muito sentido. Podia acontecer, mas qualquer coisa teria corrido muito mal nesse processo. Claro que me deu também acesso a histórias, a pessoas e a conversas na minha infância que de outra forma não teria tido.
Há um lado consciente, racional de consciência política que tem a ver com isso - com o combate às injustiças, com esta noção de democracia. É isso que marca a vida do meu pai. Não é tanto a questão político-partidária na qual ele nunca se interessou. Em casa, isso nunca foi um tema muito grande. Era, sobretudo, as questões ligadas com a democracia e a liberdade e isso obviamente deixa raízes.
Ou seja, estás a dizer que era inevitável enveredares pela política?
Não, não. Eu estava a dizer que era muito estranho se eu fosse parar a uma área política que despreza a liberdade, a democracia e os direitos humanos. Agora isto de ter acontecido esta filiação política, ela transformar-se na minha ocupação principal e de eu ser deputada agora é um acaso dentro das mil coisas que podiam ter acontecido. A vida encaminhou-me para aqui, devido a estar muito empenhada e ter muito interesse pela disputa política, mas podia não ter acontecido assim. Não acordei um dia e pensei “se calhar vou…”.
Sentes que, sem isso, a tua ideologia seria diferente da que tu segues atualmente?
Não há história no condicional. É impossível saber isso.
Como é que teres a tua irmã no mesmo meio que tu te influência?
É uma coincidência. Não influencia. É uma coincidência que ela seja de esquerda e partilhamos ideias, porque tivemos mais ou menos acesso às mesmas coisas. Podia acontecer e existem casos de famílias que têm ideias completamente opostas. Nos nossos acaso, não foi assim que aconteceu e lá está, o facto de estarmos as duas no Parlamento ao mesmo tempo é um acaso, uma coincidência. Foram dois parceiros distintos que se cruzaram ali, porque tinha de ser naquele momento, não foi um objetivo, nem é uma tragédia que aconteceu. Não é boa nem má... é bom, porque vejo como a Mariana é reconhecida e tenho orgulho no percurso dela, mas, mais do que isso, é uma deputada do Bloco de Esquerda e, no Parlamento, nós temos essa relação enquanto camaradas.
A política é um assunto que se tenha à mesa em tua casa?
Sim, os meus pais sempre discutiram muito a política, mas, como eles não eram filiados em nenhum partido, a disputa partidária nunca foi propriamente um tema. Discutia-se o Governo, discutiam-se, eventualmente, as posições políticas deste e daquele, mas não nessa lógica. A política também era diferente nessa altura - é importante dizer isso. Quando eu estava a crescer, basicamente, dizer mal do Cavaco era o prato do dia, e justamente! Dizer mal do Cavaco com justiça e com verdade.
Mas a política mudou muito, e mudou muito nos anos recentes. Claro que, estando nós no Bloco, e em posições de destaque, as discussões à mesa têm uma abrangência muito maior. Portanto, tanto se discute coisas mais genéricas sobre a ascensão da extrema direita, como questões mais finas como a disputa partidária e questões mais internas. Eu acho que isso faz parte.
"É preciso criar nos jovens a consciência de que nunca se é demasiado jovem para resolver os problemas."
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Dentro do bloco, fazes parte de uma facção totalmente oposta da tua irmã Mariana. É comum colidirem?
O Bloco é um partido plural, democrático, que, felizmente, tem correntes internas, o que torna a disputa interna muito saudável.
Portanto, eu e a Mariana arrumamo-nos de maneira diferente dentro do Bloco. Isso não faz de nós pessoas que estejam em facções opostas. Somos apenas duas pessoas que pensam de maneira diferente, mas que partilham um programa e um projeto político em comum - a construção do Bloco de Esquerda e o programa do Bloco de Esquerda.
Claro que, no percurso do Bloco, e quando se começa a acumular anos disto - e eu já tenho alguns -, às vezes, as posições aproximam-se e, outras vezes, as posições distanciam-se.
Já aconteceu eu e a Mariana estarmos mais distanciadas, porque as nossas respetivas correntes políticas estavam distanciadas ou porque tivemos de dar a cara por listas diferentes dentro do Bloco. Se nós entendermos que isso é tão natural como a democracia, então também não há razão para andarmos à bulha em casa por causa disso! (risos) Já houve momentos mais tensos que outros, mas isso nunca determinou a nossa relação, como é evidente.
Iniciaste a tua carreira de ativismo aos 15 anos, enquanto voluntária da Associação Justiça e Paz, desenvolveste projetos de ativismo estudantil e filiaste-te no Bloco aos 18 anos. Porquê tão nova?
Pois, olha, não sei… (risos) Não há muitas explicações. Quer dizer, porque é que vocês se interessam por estas coisas tão novos? Em primeiro lugar, porque acho que é preciso! É preciso criar nos jovens a consciência de que nunca se é demasiado jovem para resolver os problemas. “Pá, tu depois pensas nisso e tal…” Não se é demasiado jovem para resolver os problemas, nem os problemas são demasiado complexos para serem apreendidos por jovens.
Eu sempre tive muito essa ideia de que não era por ser jovem que me deviam pôr à parte daquelas coisas que nós estávamos a ver, que não estavam certas e queríamos corrigir.
Qual é que foi a tua primeira oportunidade política e quando é que esta ocorreu?
Com grande responsabilidade, provavelmente no secundário, quando comecei a participar nas listas para a Associação de Estudantes, quando fui eleita representante dos alunos no Conselho Pedagógico. Foi nessas representações participativas dos estudantes.
És licenciada em Relações Internacionais. O que é que achas que este curso adicionou à tua carreira de deputada?
Ser deputada não é uma carreira. Não é uma coisa que se é, é uma coisa que se está. Está-se naquele momento, porque faz sentido para ti, faz sentido para o partido, porque faz sentido para as pessoas que te elegem e que confiam em ti. Sentes que tens esse contributo a dar. E, desse ponto de vista, qualquer formação de base, qualquer percurso é útil para o desempenho das funções de deputado.
O nosso trabalho enquanto deputados consiste em vários níveis de representação: representação das pessoas que votaram em nós, representação pelo qual nos elegemos, representação e lealdade ao programa político com o qual fomos eleitos e com os setores sociais que nós defendemos. Ser professor ou ser estudante são experiências importantes para se ser deputado porque há uma amplitude de interesses que se defendem quando és deputado ou deputada e todas as experiências são válidas.
Por isso é que nós sempre dissemos que recusamos um Parlamento tecnocrata, feito de juristas, advogados e pouco mais. Embora o Parlamento exista para fazer leis, ele não é um gabinete jurídico. O Parlamento existe para representar lutas sociais e setores sociais. Um operário não precisa de saber fazer leis para saber qual é a lei laboral que mais defende os trabalhadores. Um estudante não precisa de ser especialista em direito para saber que tipo de universidade é que quer.
Claro que, em alguns momentos, o curso que eu tirei me deu algum jeito, facilitou algumas coisas em que tive de estudar menos porque já sabia. Noutras, tive de estudar, porque não sabia! Mas isso é assim.
"Ser deputado, independentemente de seres mediático ou não, implica teres a tua vida toda escrutinada."
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Que estratégias usas para lidar com o mediatismo que é, muitas vezes, usado de forma negativa para interferir com o vosso trabalho?
Isso é uma pergunta complicada. Deve ser muito complicado ser estrela de cinema ou estrela de rock, ou a Madonna… Acho que isso deve ser muito complicado. Nós, aqui, não estamos a falar disso. Estamos a falar de um conjunto de deputados e deputadas inseridos nos mais variados partidos, que são conhecidos porque aparecem na televisão a representar os seus partidos. Isso cria uma relação completamente diferente com as pessoas. Não é a relação mediática que uma estrela de rock tem com fãs. É verdade que, às vezes, as pessoas nos reconhecem, gostam de nós ou não gostam de nós, mas é uma relação completamente diferente.
Agora, se cria entraves no dia-a-dia, pode criar, para pessoas que tenham esse nível de reconhecimento público - eu felizmente, acho que não me incluo. Pode limitar a vida.
O anonimato é uma coisa muito boa. Às vezes, tu não queres ser reconhecido, queres fazer a tua vida sem que ninguém saiba o que andas a fazer. E há pessoas para quem isso se tornou muito complicado. O mundo da política ainda passa um bocadinho - isto também está a mudar! - ao lado dos exageros em que se transformou o resto da vida mediática. O que não quer dizer nada!
Ser deputado, independentemente de seres mediático ou não, implica teres a tua vida toda escrutinada. Toda! Qualquer deputado tem de saber isso e tem de estar preparado para isso. E, sobretudo, tem de ser coerente com aquilo que defende, porque estar numa posição de representação pública também exige uma grande responsabilidade e um grande dever de transparência. Quem não estiver preparado para isso, provavelmente, vai se sentir muito sufocado por ter tudo declarado - todos os rendimentos, todas as posses, todo o património. Tudo, tudo, tudo é declarado e escrutinado. Todas as presenças, ausências, horários de entrada e saída. Mas, lá está, eu acho que isso faz parte da função que estamos a desempenhar.

Fotografia: esquerda.net
Também foste presidente da UDP entre 2010 e 2015. O quê que esta organização política, que um dia ajudou a formar o Bloco de Esquerda, adiciona à tua militância?
A UDP foi um espaço de formação ideológica muito importante para mim numa altura em que eu precisava de encaixar aquilo que eu pensava. Até porque os instintos só não chegam e chega a uma altura em que tu queres desenvolver o teu pensamento político e precisas de enquadramentos maiores, não é? Perceber onde é que isto encaixa, onde é que isto que eu penso encaixa e qual é a minha teoria sobre a transformação social.
Eu sei que é preciso uma transformação social. Eu acredito que ela seja possível. Acho que tenho de participar nisso, mas como é que isto é? Transformação social como? Para quê? Quem é que a faz? Como é que se acumula forças para ela?
Portanto, eu tinha, de base, um instinto, uma ideia de esquerda muito próxima àquilo que se chama hoje, genericamente, o marxismo. O marxismo crítico, porque eu ainda não me tinha bem encaixado e depois quando cheguei ao Bloco [de Esquerda] aconteceu ter uma afinidade maior com as ideias políticas da UDP, que foi um dos partidos que deu origem ao Bloco e ter entrado. Podia ter acontecido de outra maneira, muitas outras pessoas entraram noutras e isso, lá está, fazia parte da beleza do Bloco e eu continuo a achar isso. E pronto… depois o percurso dentro da UDP foi esse.
Aprendi imenso, aprendi com muita gente e chegou o momento em que quando foi preciso ou quando foi sentida a vontade de uma renovação geracional eu aceitei. Mesmo sabendo que não iria ser um percurso fácil (risos).
Falando agora um pouco dos teus interesses, há pouco referiste que tinhas livros da Amália, consideras-te uma “fadisteira”, uma fã de fado, certo?
A malta dos fados não gosta muito dessa expressão. Eles acham que quem gosta dos fados é fadista. O problema é que se eu disser que sou fadista as pessoas pendem-me para cantar e, portanto, digo que sou “fadisteira” que é para não haver confusão. Para não haver esse risco (risos).
De onde vem esta paixão pelo fado?
Vem do meu avô, da relação do fado com o cante alentejano e de uma procura qualquer de identidade cultural popular.
Vem de uma procura por uma expressão cultural que não é, ao contrário do que se possa pensar, das elites, não nasceu das elites. É uma expressão cultural bairrista, neste caso urbana, de Lisboa, mas com muitas outras raízes.
É uma das expressões culturais populares que temos no nosso país, mas teve um desenvolvimento que a transformou também no ponto de vista musical numa coisa de uma excecionalidade muito grande.
"Eu gostava muito que nós, enquanto sociedade em Portugal, mas do ponto de vista mais lato e mais global, fôssemos capazes de impedir que este século fosse marcado por regimes de extrema-direita."
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És frequentadora assídua das casas de fado?
Sou. Sou e tento ir agora também dentro das regras, daquelas que continuam abertas, tento continuar a ir, sim.
Se de repente perdesses o teu lugar na Assembleia, que outra paixão seguirias?
Quais são os teus objetivos para os próximos anos dentro da política e fora dela?
Ui!... Isto é muito difícil apontar as coisas assim. Há grandes objetivos e há outros mais pequenos.
Eu gostava muito que nós, enquanto sociedade em Portugal, mas do ponto de vista mais lato e mais global, fôssemos capazes de impedir que este século fosse marcado por regimes de extrema-direita.
Isso é um objetivo? É. Depende de mim diretamente? Não. Mas quero muito contribuir para a reflexão sobre isso. Para a reflexão sobre o que é que está a acontecer ao mundo. Porque é que a extrema-direita está a crescer? Como é que nós podemos impedir? Acho que pode ser trágico para as próximas gerações e eu, pessoalmente, não quero passar por isso e acho que é meu dever impedir que a humanidade em geral passe por isso, como acho que tanta gente que está a ver o que é que está a acontecer está a ver tem este tipo de preocupação.
Mas isso é um nível de objetivos. Se me perguntarem “Quais são os objetivos que tenho no Parlamento?” Eu acompanho a escola pública e gostava muito de poder contribuir durante o tempo em que acompanho esse assunto, para uma escola que não esteja num ponto em que está a nossa, de ver que metade dos professores se vão reformar nos próximos dez anos e não termos um plano para resolver esse problema, não é? E, portanto, gostava muito de contribuir para uma escola pública mais robusta, mais capacitada para gerar igualdade social, mais respeitadora da autonomia dos jovens e das crianças, mais respeitadora dos direitos dos trabalhadores… Gostava muito de fazer esse percurso e isso é um objetivo para mim.
Do ponto de vista pessoal vou continuar a guardá-los, se não se importam (risos).
"Há na exclusão social um dos pilares do crescimento da extrema-direita."
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O que te assusta no quadro político atual? Há pouco falaste da ascensão da extrema-direita…
Ah… sim. Isso é uma das coisas que me assusta. Não é simplista, ou seja, não é “Está ali o diabo, vamos ficar histéricos e correr de um lado para o outro a gritar”. Não é isso. Mas preocupa-me que não haja uma capacidade de reflexão mais abrangente sobre o que é que motiva a ascensão da extrema-direita e quais é que são as causas para a ascensão dela.
Sentes que a tua vida moderou o teu sentimento revolucionário ou ele está mais vivo que nunca?
O meu sentimento revolucionário está mais vivo que nunca! Aliás, esta ascensão da extrema-direita mostra isso. A ideia de que o sistema capitalista em que nós vivemos pode ser moderado, de forma a não se tornar tão selvagem que obrigue milhões de pessoas a viver na miséria, exclusão social, que não gere guerras atrás de guerras, que não vá criando um caos ambiental e climático… Essa ideia é uma ideia que só serve quem quer manter as coisas como estão e o problema é que isto traz contradições no sistema económico e financeiro. São tão grandes e cada vez maiores, que as pessoas estão a desacreditar-se que as coisas possam melhorar, deixam de acreditar no sistema.
Quando isto acontece, as pessoas tendem, não a culpar o sistema económico e financeiro - porque este é muito complexo e não tem propriamente caras -, mas a culpar a democracia e o sistema político, enquanto representante desse sistema. Claro que isto é muito complexo, são fenómenos sociais muito complicados. No entanto, há na exclusão social um dos pilares do crescimento da extrema-direita. E pessoas que já viram o capitalismo a criar novas roupagens, sempre com novas promessas, também já perceberam que a extrema-direita é a saída reacionária do capitalismo. Não é uma alternativa. É uma saída dentro do capitalismo para resolver a falta de credibilidade do sistema.
Isto só nos pode levar a pensar que, ou nós criamos uma alternativa à esquerda que tenha a justiça social, a igualdade, a solidariedade, salvar o planeta como objetivo, ou então há um caminho muito complicado que nos espera.

Fotografia: Assembleia da República
Daqui a 20 anos, ou algum tempo, vias-te como líder parlamentar do Bloco de Esquerda?
Ser líder parlamentar é um trabalho muito difícil e eu não invejo o Pedro Filipe Soares. É um que implica conhecer muito bem o regimento, ter muita paciência, cabeça fria. Eu estou muito contente que nós tenhamos o Pedro Filipe Soares nesse cargo.
E coordenadora do Bloco de Esquerda?
Esse também é um trabalho muito difícil! (risos) Acho que a Catarina está a ser genial nesse cargo. Vamos não discutir outra vítima. Lá está, é outra vida que não invejo.
Mais de uma hora depois, as circunstâncias obrigaram a que terminássemos a conversa. Como diz a expressão, “o que é bom acaba depressa”. Despedimo-nos. Outro click e… terminou.