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STAYAWAY COVID : "Estou a proteger-me a mim e aos outros"

A app criada para ajudar a combater a pandemia está disponível há quase 4 meses. Durante este tempo, teve de enfrentar várias limitações: a adesão, a colocação dos códigos, a questão da obrigatoriedade e as informações falsas a circular nas redes sociais.


Ana La-Salete Silva e Rui Vieira Cunha (texto)


Fotografia: Miguel Manso


Ficou disponível para download a 28 de agosto e, quatro dias depois, data do seu lançamento oficial, já 121 mil pessoas a tinham no seu smartphone – um “dever cívico”, como disse António Costa na sessão de apresentação.


Uma semana depois, eram 660 mil. A 20 de setembro, mais de um milhão. Os códigos gerados? Apenas nove.


Entretanto, uma proposta do Governo que tornava a utilização da STAYAWAY COVID mandatória em contexto laboral ou académico gerou um debate em torno da liberdade individual. Ao passo que a Proteção de Dados anunciou quase imediatamente que via “graves questões” sobre a “privacidade dos cidadãos”, a Ordem dos Médicos assumiu-se, um mês depois, contra a obrigatoriedade da aplicação, numa altura em que se tinham gerado 730 códigos, apenas 300 dos quais inseridos pelos utentes. “Não é com medidas irrealistas, sem evidência científica sólida, criando falsas expectativas de segurança, que ajudamos a construir uma frente de combate eficaz”, pode ler-se no comunicado da Ordem.


Com a suspensão do projeto de lei, o debate silenciou. Ainda assim, atualmente, os códigos gerados pelas autoridades de saúde pouco ultrapassam os seis mil, sendo que apenas cerca de um terço dos mesmos é que foram inseridos. E a dúvida persiste: a aplicação portuguesa de combate à pandemia funciona realmente?



Uma adesão “perfeitamente razoável”


“Devia ser 10 vezes mais!” – quem o diz é José Manuel Mendonça, presidente do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC-TEC) e criador da STAYAWAY COVID, em entrevista ao SATÉLITE. Refere-se ao número de códigos para cidadãos infetados que foram gerados e inseridos na aplicação, que ficou aquém do desejado, mas, ainda assim, “perfeitamente razoável” para o investigador.


No total, a app portuguesa de combate à COVID-19 foi transferida cerca de dois milhões e 600 mil vezes. Contudo, Mendonça alerta que nem todas as aplicações estão a ser utilizadas corretamente, ou de todo, o que faz com que, na realidade, este número esteja por “por volta de dois milhões”.


Ainda assim, “todos os dias, as pessoas vão instalando”, afirma. A quantidade diária de downloads varia entre os seis e os dez mil – mas há uma série de “impulsos” esporádicos que a aumentam significativamente: “quando houve a polémica do primeiro ministro, da obrigatoriedade, tivemos 200 mil num dia (…); cada vez que a seleção joga, são 80 mil ou 90 mil”, explica José Manuel Mendonça.



Frágil e tardia: a relação do SNS com a STAYAWAY COVID


Ao passo que a adesão por parte dos utentes foi “razoável” o mesmo não pode ser dito pelo criador da STAYWAY COVID acerca da forma como esta foi inserida no sistema de saúde.


“Temos um sistema de saúde que é complexo e, portanto, os médicos não aderiram massivamente. Não aderindo o médico, a pessoa também fica fragilizada”, afirma.


Apesar de o lançamento da aplicação ter sido em setembro, só no mês seguinte é que a Direção Geral de Saúde começou a fazer circular informação para os profissionais da área – demasiado tarde, “numa altura terrível em que os médicos andam debaixo de água”, devido ao aumento sucessivo do número de casos de COVID-19, e “não têm tempo para fazer a formação”, explica Mendonça. Dado as autoridades de saúde terem demorado demasiado tempo a confirmar que iriam aderir à aplicação, “o que devia ter sido feito em agosto e setembro, foi feito em outubro e novembro”.


Este fator e o facto de muitos médicos não confiarem nesta tecnologia são, para o investigador, os principais motivos pelos quais o Serviço Nacional de Saúde não lhe deu grande atenção e não gerou códigos para todos os infetados que utilizavam a aplicação.


O presidente do INESC-TEC explica que a saúde é um “sistema ciberfísico” - em que o “ciber” se refere à tecnologia e o “físico” engloba as instituições, profissionais e utentes -, apontando que a falha está na componente física, de um SNS que não adere e não fornece os códigos a todos os infetados. Acrescenta ainda que esta situação se reflete constantemente no help desk da aplicação que, ao invés de receber mensagens acerca do funcionamento da mesma, é invadido por “dezenas e dezenas” de queixas de falta de fornecimento destes códigos por parte dos médicos.


O diretor clínico adjunto do Hospital da Luz, em Gaia, também contactado pelo SATÉLITE, corrobora a opinião do investigador, admitindo que a aplicação “fica em segundo plano”. Para Daniel Beirão, “o médico tem de escolher entre fazer o procedimento clínico ou fazer um código para a aplicação”, dado que este processo é “demasiado burocratizado”.


É tendo esta problemática em conta que José Manuel Mendonça reconhece que “no meio da pandemia, desta confusão e da pressão que o sistema de saúde tem, também não é fácil estar a promover a app e a dizer ‘ponham códigos’, ‘façam assim’ e ‘não façam assado’”.


O criador da STAYAWAY COVID avançou ainda ao SATÉLITE que está em cima da mesa a proposta de automatizar o processo de fazer chegar os códigos aos infetados, através do sistema que já contacta os utentes – o Trace COVID – que, ao enviar uma mensagem de texto com o resultado do teste, pode incluir o código, independentemente de o indivíduo usar ou não a aplicação e de o pretender ou não inserir. Esta proposta aguarda aprovação do Governo e da DGS.



Privacidade, a questão sem fundamento


O grande objetivo da STAYAWAY COVID é tornar o telemóvel num dispositivo de rastreamento de contactos com outros utilizadores e, numa situação de possível contágio, alertar para a mesma. Mas, afinal, como é que tudo isto funciona?


Os telemóveis com a aplicação instalada interagem entre si através de Bluetooth, o que implica que este deve estar sempre ligado para que a tecnologia funcione corretamente.


Todos esses contactos são registados num servidor, ao qual todos os dispositivos com a aplicação acedem uma vez por dia, para verificar se existiu algum contacto de risco – que apenas é considerado como tal pelo sistema se tiver sido feito durante pelo menos 12 minutos, a menos de dois metros, nas duas semanas anteriores à verificação.


Se uma pessoa é diagnosticada com COVID-19, recebe um código de 12 dígitos que pode inserir na aplicação. Após essa inserção, é enviada a informação ao servidor de que a pessoa está infetada e, quando os outros telemóveis com a app instalada acederem ao mesmo, os utilizadores que tiveram um contacto de risco com a pessoa que inseriu o código são avisados dentro da própria aplicação.


Todo este processo é anónimo, sendo que os únicos dados em jogo são números encriptados que servem como “semáforos que os telemóveis trocam uns com os outros e que o sistema usa para medir” a distância e o tempo do contacto, de acordo com a explicação de José Manuel Mendonça. “A aplicação não tem acesso a nenhuma informação do telemóvel, está blindada”, garante.


O Bluetooth assegura a privacidade dos utilizadores, por ser a tecnologia “mais descentralizada e mais ligada ao cidadão” – e a única necessária para o funcionamento da aplicação, sendo que a localização, apesar de ligada nos dispositivos Android, não está a ser utilizada. Este problema advém do próprio sistema Android, que pede a localização ligada juntamente com o Bluetooth e, por agora, não há a possibilidade de contornar isso. “Estamos mortinhos que saia o próximo Android em que isto já não é preciso”, admite o presidente do INESC-TEC.


Apesar do grande debate em torno da privacidade gerado pela aplicação STAYAWAY COVID (e pela possibilidade de obrigatoriedade que foi, entretanto, colocada), Daniel Beirão nunca teve dúvidas acerca da sua segurança. “Eu suponho que, sendo quem é o organismo criador, a proteção de dados seja totalmente cumprida. Eu não tinha essa preocupação, mas calculo que muitos dos meus colegas tinham essa preocupação e os doentes também", afirma.



“Se eu usar estou a proteger-me a mim e aos outros"


No que toca a uma possível elitização, José Manuel Mendonça refere que o facto de “um telemóvel de 10 anos não suportar a app, assim como o “facto de haver pessoas que não têm sequer smartphone e não têm internet móvel, faz com que só 6,2 milhões dos 10 milhões de pessoas é que possam instalar a app. “


Apesar deste cenário, o presidente do INESC-TEC afirma que “se dois ou três milhões de pessoas tiverem isto instalado e a funcionar, não é preciso que tenham os seis. Porque isto tem este efeito de grupo”.


José Manuel Mendonça relembra também que “dos dez milhões de portugueses, há logo um milhão abaixo de X anos que não tem sequer telemóvel e mais outro milhão de pessoas que tem uma idade tal que não sabem trabalhar”. Desta forma, o responsável pela aplicação defende que “ter 6,2 milhões entre oito potenciais não é um grande problema, até porque como eu disse o facto de já termos dois milhões a usar quotidianamente é muito bom”.


O investigador confessa que “há um problema de elitização”, mas volta a falar do contexto de grupo, ao referir que “todos os portugueses que têm telemóvel e a quem custa zero instalar estão a proteger os portugueses que não têm dinheiro para instalar a aplicação ou que não são capazes”. Este é, na sua opinião, um caso semelhante ao uso de máscara - “se eu usar estou a proteger-me a mim e aos outros”. José Manuel Mendonça lamenta que “as pessoas talvez não tenham interiorizado”.


Desinformação, um inimigo na operacionalização da app


A questão da desinformação foi bastante referida tanto por Mendonça como pelo médico Daniel Beirão. O último lamenta a “má informação que há ao nível de redes sociais” e refere que mesmo as informações falsas referentes a outros países “as pessoas extrapolam para a realidade portuguesa com ou sem razão”.


O médico refere ainda que alguns movimentos, como o “Médicos pela Verdade“, contribuem para agudizar o processo de desinformação.


Este é um movimento que desvaloriza a gravidade da COVID-19 e que faz publicações nas redes sociais que colocam em causa o trabalho científico sobre a pandemia. Um membro deste grupo chegou mesmo a dar dicas para “manipular” o resultado do teste de deteção da doença e enganar as autoridades de saúde.


Ora, na opinião de Daniel Beirão, tudo isto acaba por “dificultar mais a adesão a uma aplicação, mesmo cumprindo todos os pressupostos legais de proteção para os doentes”.


José Manuel Mendonça ressalva que, da parte do instituto que preside, sempre houve a intenção de esclarecer os cidadãos, nomeadamente através de “dezenas de entrevistas na TV, rádio, media", bem como um website e FAQs.


Fora da comunicação feita pelo seu instituto, José Mendonça destaca o artigo explicativo feito pelo jornal PÚBLICO e conclui que o que falta é “um esforço”, lamentando que “muita gente não faz o esforço, lê em 15 segundos e formam uma opinião”.


Em relação ao funcionamento da app, o presidente do INESC-TEC defende que "as interfaces e as cores têm de ser simples para as pessoas perceberem”. Neste sentido, a aplicação é extremamente simples - na perspetiva de Mendonça, "está despida de tudo, até é chata, monótona, porque, se tivesse muita coisa, começava a pedir informação às pessoas e lá ia a privacidade”.


Para o responsável pela STAWAWAY COVID, é devido à onda de desinformação em torno desta tecnologia que se está a perder “a oportunidade para a app ser mais útil do que é, por causa de uns preconceitos de pessoas que nunca perceberam para que é que funciona, ou preconceitos por razões ideológicas ou políticas”.


Tendo isso em conta, José Manuel Mendonça alerta para o fator “novidade” e vai mais longe, ao afirmar que, nos primeiros países a implementar aplicações do género, não existe qualquer preocupação com a proteção de dados.


Para rematar o assunto, revela que “foi difícil convencer as próprias entidades de saúde de que isto é uma coisa útil.” Por isso, a app foi desenvolvida em cerca de dois meses e meio “com o apoio do Ministério da Ciência, mas sem a certeza de que as autoridades iam aceitar. E só aceitaram quando perceberam que os países europeus, 16 ou 17, já têm aplicações interoperáveis, que vão interagir entre si.”


Questionado sobre o que teria feito de forma diferente se soubesse o desfecho de toda a situação em torno da aplicação, o investigador responde que, em primeiro lugar, tentaria ser mais “chato” para convencer as autoridades de saúde mais depressa.


Em segundo lugar, “depois de eles terem aceite, teria sido mais chato e mais agressivo para os convencer de que era preciso comunicar aos médicos, conquistar os médicos de saúde pública, do sistema de saúde”.


Por último, mas não menos importante gostaria de ter defendido melhor o seu trabalho perante os “muitos patetas”. Neste sentido, aponta para o facto de ter visto “cientistas a dizer patetices, porque eram cientistas noutras áreas.” José Manuel Mendonça considera que este tem sido um dos problemas no combate à COVID-19: “de vez em quando, havia cientistas – até prémios Nobel – que vinham dizer patetices porque estavam a falar numa área em que não são prémio Nobel”.



App "muito bem pensada", mas com "limitações" na prática


Passados mais de três meses e meio do lançamento da app, o presidente do INESC-TEC afirma que “a app cumpriu e seguiu mais ou menos o que era expectável”, mas confessa que esperava que houvesse mais tempo de adaptação e que fosse “mais fácil".


"De facto, não esperávamos que, a seguir ao verão, de repente, isto começasse a complicar. E esperaríamos, como talvez até esperariam as autoridades de saúde, que houvesse tempo para pôr isto a funcionar“, confessa.


Apesar de considerar que a aplicação correspondeu às expectativas iniciais, o responsável pela mesma realça que, se a proposta de automatizar o processo for aceite, "haverá muita gente que nem sequer vai sobrecarregar o Sistema de Saúde”.


Já Daniel Beirão elogia a aplicação numa vertente mais teórica - “está muito bem desenhada, muito bem pensada” -, mas refere que as suas limitações, na prática, podem inviabilizar o objetivo de tornar o rastreio populacional mais eficaz.


"Tenho dúvidas que isso se consiga devido às limitações, mas, na teoria, é excelente”, conclui o médico de clínica geral.

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