Mais de mil pessoas juntaram-se ao movimento “A Pão e Água”, esta sexta-feira, na Avenida dos Aliados. Pedem mais compreensão por parte do governo face às dificuldades que os setores da hotelaria, restauração, arte e cultura têm enfrentado.
Ana La-Salete Silva (texto, fotografia e vídeo), Ana Isabel Ribeiro e Rui Vieira Cunha (fotografia)
“O futuro não se põe a marinar”. Era este o trocadilho que se lia no primeiro cartaz a ser levantado, numa altura em que ainda faltava meia hora para o início da manifestação. Quem o segurava era Manuela Barbosa, dona de um restaurante. Protesta, pois não pode despedir empregados (por ter obtido apoio do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) há uns meses) nem tem como os sustentar. “Eu tenho sete famílias que dependem de mim. Se não vou vender, nem posso despedi-los, o que é que vou fazer?”, questiona.
Situações semelhantes, que se justificam pelas medidas de contenção à pandemia, bem como pela demora e insuficiência dos apoios prometidos pelo Governo, levaram a que, lentamente, a Avenida dos Aliados se enchesse de trabalhadores do setor. Embora, no Facebook, o evento só tenha 182 confirmações, a verdade é que iniciou, por volta das 16 horas, com centenas de pessoas no local.
Na segunda-feira, primeiro dia do estado de emergência declarado em Portugal, o movimento já havia realizado uma manifestação. Contudo, parece que a chegada do final da semana está a corresponder às expectativas, segundo o que se pode ler na descrição do evento - “a nossa expectativa prevê uma adesão - no mínimo - dez vezes maior do que a realizada no dia 9 de novembro”. E não vão ficar por aqui: este sábado, deslocam-se a Lisboa, para uma mobilização que terá início às 12:30, no Rossio.
Tudo isto com um objetivo: que o Governo valorize e proteja o setor. “Vivemos num Estado social. Pagamos os nossos impostos e contribuições para que, em caso de necessidade, estejamos protegidos. E exigimos, agora, essa proteção", lê-se no manifesto do movimento “A Pão e Água” (partilhado no Facebook pelo chefe e apresentador Ljubomir Stanisic), cujas 16 exigências vão de apoios financeiros à isenção ou prolongamento de prazos para pagamentos.
Rostos de uma crise
Manuela foi a primeira a erguer um cartaz, mas facilmente a perderíamos de vista após uma multidão se ter juntado a si. Joel Coelho destaca-se com o uniforme que utiliza - é pizzaiolo num estabelecimento em Baltar. Esteve também presente na manifestação de segunda-feira e afirma que a sua intenção é “mudar” a situação de crise atual, mesmo tendo conseguido suportar os encargos financeiros do seu negócio familiar sem qualquer apoio, graças ao serviço de take-away – até que isso também lhe foi tirado.
Quanto ao pagamento de 20% das despesas dos próximos dois fins-de-semana aprovado esta quinta-feira pelo Governo, Joel considera-o insuficiente face aos prejuízos provocados pelas restrições. Bruno Cunha partilha da mesma opinião, acrescentando que os próprios apoios ao lay-off foram demorados, sendo que ainda aguarda o segundo pagamento.
Gerindo também ele um negócio no setor da restauração, afirma que o recolhimento ao fim de semana vai apenas constituir mais um entrave à economia, sem grande eficácia. Exemplifica, até, com algo que lhe aconteceu recentemente:
“Eu tinha a marcação de um jantar, no fim-de-semana passado. Esse jantar foi desmarcado por causa de todas as restrições a nível de horário – a cliente fazia anos depois da meia-noite e não fazia sentido estar a cortar o bolo antes. Então, decidiram fazer em casa, e o que é que acontece? Vemos no Facebook e Instagram fotografias dos convidados todos metidos dentro de uma casa, onde não há qualquer tipo de controlo, não há máscaras, álcool-gel, não há nada! Portanto, eu acho que é isso mesmo que vai acontecer neste fim de semana: as pessoas não vão poder ir a restaurantes, não vai haver controlo nenhum”, conta.
Mas há quem pense que esta decisão tomada pelo Governo tem fundamento. É o caso de Bruna Coelho, trabalhadora do setor da restauração, que espera uma redução dos casos diários de COVID-19 com o estado de emergência implementado. Ainda assim, aponta aquilo que pensa ser uma espécie de “injustiça” com a qual todos os que a rodeiam concordam. “Se podemos ir ao supermercado, nós, na restauração, que temos várias técnicas de higienização e conseguimos manter a segurança dos clientes, devíamos poder trabalhar”, remata.
“Acrescentar crise à crise”
A opinião de Bruna parece ser consensual. “Queremos trabalhar, temos contas para pagar!” é um dos cânticos que mais se ouviram durante toda a manifestação. Cartazes amontoaram-se ao longo da Avenida dos Aliados e o distanciamento social tornava-se cada vez mais difícil de cumprir.
A pedido de membros da organização, o próprio Presidente da Câmara do Porto saiu do edifício e dirigiu-se aos manifestantes, para mostrar “solidariedade” e “respeito pela situação que todos vivem”. Segundo Rui Moreira, o difícil é “fazer o rastreio” dos recursos, para conseguir apoiar todos os setores em necessidade, que, acrescenta, são muitos na cidade do Porto. “Mas podem confiar em nós”, termina.
Ainda assim, o chefe e apresentador do programa “Pesadelo Na Cozinha”, Ljubomir Stanisic, presente para dar a cara pelos manifestantes, dirigiu-se diretamente ao Presidente da Câmara, pedindo explicações relativamente ao tempo demorado a tomar uma decisão para apoiar o setor. Em resposta, Rui Moreira falou da “expectativa criada no verão de que as coisas iriam melhorar”, que provocou a desilusão sentida pelos trabalhadores do setor.
Posteriormente, o movimento “A Pão e Água” optou pelo uso do simbolismo, ao pegar fogo a dois caixões, representativos, segundo os manifestantes, da morte do setor. Mas rapidamente a revolta dos presentes levou a situação a descontrolar-se e obrigou a intervenção policial. Após confrontos e arremesso de garrafas contra os agentes da PSP do Porto, houve uma detenção, por entre protestos.
Esta situação acabou por marcar a manifestação, algo que o grupo organizador admitiu, no discurso final, que não era o ideal: “A nossa mensagem não é esta. (…) Levantem os cartazes e mostrem que a maioria está cá para reivindicar apoio para podermos superar esta segunda vaga, dure ela o quanto durar”, pediram.
Independentemente do acontecimento que marcou a tarde, o movimento “A Pão e Água” vai prosseguir com a promessa de mostrar qual é o verdadeiro motivo pelo qual se manifestam. E, para Maria Manuela Rola, deputada do Bloco de Esquerda que também esteve presente, iniciativas deste género são importantes, dado servirem para que as pessoas “façam notar que estão em grandes dificuldades, que tem de haver soluções e que o próprio Governo tem de avançar com propostas que garantam que estas pessoas tenham os seus problemas minimamente menos aprofundados”.
Para a deputada, o Governo tem de deixar de “empurrar com a barriga” ou, de outra forma, estará apenas “a acrescentar crise à crise”. Acrescenta ainda que um “problema grave” é também a burocracia, que impede os trabalhadores de “aceder aos apoios”. “O que era preferível e desejável era que, de facto, houvesse uma aceleração de todos os processos, porque as pessoas não vivem de burocracia”, afiança.
“Força!” foi a última exclamação que se ouviu, pouco após as seis da tarde. E é exatamente com força que o movimento se vai continuar a fazer ouvir durante o fim-de-semana e todos os dias, aos ombros de um dos setores que mais pedem apoio.
Comments