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Damas de Ferro

Atualizado: 14 de jan. de 2021

São mais do que homens na população. São menos do que os homens na política. Atribuem-lhes cargos mais pequenos, com mais probabilidade de falhar e de menor importância. Ainda existe um longo caminho para percorrer para estas “Damas de Ferro”.

Ana Isabel Ribeiro (texto)


Fotografia: cig.gov.pt


“Eu acho que as mulheres têm o grande poder de se autoempoderarem e de conseguirem que nada, como dizia a Simone de Beauvoir, que nada as defina, que nada as limite e que a liberdade seja a sua substância. Isso (…) representa aquilo que é a capacidade das mulheres mesmo contra aquilo que pode ser a adversidade histórica que tem limitado os seus direitos, de tentarem, de alguma forma, romper essas barreiras e lutar pelos seus direitos”, afirma a deputada do PAN, Inês de Sousa Real.


Em 46 anos de democracia, Portugal teve apenas uma mulher como primeira-ministra e nenhuma como Presidente da República. A nível local, o país nunca teve uma mulher como presidente da Câmara nas principais autarquias. Ainda que o número de mulheres a ocupar o cargo de presidência de câmara tenha aumentado, verifica-se a presença das mesmas em autarquias mais pequenas.


Para a deputada do PAN, Bebiana Cunha, a promoção da igualdade de género na política é, na sua grande maioria, decorativa. Ter representação feminina no meio não quer dizer que ela exista. “Não basta um autocolante a dizer ‘Somos Iguais’”, alerta.


As mulheres ainda são uma minoria no meio político. Atribuem-lhes cargos mais pequenos e de menor importância. Em 100 anos de República, 46 anos de democracia e dois séculos da entrada da mulher no meio político, ainda é reduzida. Segundo Inês de Sousa Real, “ainda há um longo caminho por fazer”.


Mulheres pelas frinchas


“Uma mulher que ambicione ter uma carreira na política, ainda é em alguns setores é visto como contranatura, algo que não é expectável.” A frase é da deputada do Bloco de Esquerda, Beatriz Gomes Dias, uma das 91 mulheres que, atualmente, compõem a Assembleia da República. A mulher encontra-se ainda muito sub-representada naquele que é o meio político-partidário. Se é verdade que existiu abertura para que ela entrasse no meio, também é verdade que essa abertura se ficou “pela frincha” da porta. Atribuem-lhes lugares de menor destaque ou com maior probabilidade de falhar. Na verdadeira aceção da palavra, as mulheres têm de aprender a lidar com “tetos de vidro”, sem se cortarem.


Para a investigadora Carla Cerqueira, esta situação deve-se maioritariamente à presença de uma resistência nacional, uma espécie de herança, que lhes coloca um entrave. ”Temos algumas mulheres a assumir a liderança, por exemplo, de partidos políticos. Mesmo assim, vemos que elas são muito mais escrutinadas, há uma resistência muito grande”, afirma.


“Não é tolerável nunca termos tido uma primeira-ministra eleita, nunca termos tido uma Presidente da República eleita, nunca termos tido uma presidente de câmara, em Lisboa ou no Porto, as maiores autarquias”, afirma a antiga líder do CDS, Assunção Cristas.


“Deus, Pátria, Primeira-Ministra”


“Nós tivemos apenas uma mulher primeira-ministra que exerceu o cargo de forma interina, nunca foi eleita diretamente”, acrescenta Inês de Sousa Real. Podemos apenas assinalar com uma cruz o facto de termos tido uma mulher a ocupar o cargo de primeira-ministra — Maria de Lourdes Pintasilgo.


Engenheira química de profissão, chefiou o V Governo Constitucional durante 7 escassos meses (julho 1979 a janeiro 1980). Foi eleita? Não, foi indigitada por Ramalho Eanes, na altura Presidente da República. Teve aquilo que ficou conhecido como “os 100 dias de primeira-ministra”, afirma Bebiana Cunha.


Figura, segundo Carla Cerqueira, “muito secundarizada e muito invisibilizada”, não teve direito a retrato nas paredes do Parlamento e, se o sabemos hoje, não é graças aos manuais.

Maria de Lourdes Pintasilgo foi apenas uma ponte de madeira sobre a qual o país transitou até à inauguração da ponte de ferro, que dura há 40 anos.


A brevidade do cargo não lhe roubou o mérito. Não foi, por isso, nome menos sonante do que qualquer outro que o tenha ocupado mais tempo. Ainda hoje, é encarada por quem traça caminho na política como um exemplo a seguir. Para a eurodeputada e candidata às próximas eleições presidenciais, Marisa Matias, Maria de Lourdes é uma referência, “(…) não só porque foi a primeira mulher a candidatar-se à Presidência da República e a primeira a ser primeira-ministra, embora não tenha sido em resultado de voto. Foi por nomeação, num espaço de tempo muito curto, mas foi uma referência.”


Uma nomeação que aconteceu em 1979. E, desde aí, nada se alterou. “Isto parece-me ser sintomático”, assegura Bebiana Cunha.


Presidência de “Barba e Bigode”


Os rostos da Presidência da República são marcadamente masculinos. Igualmente masculinos são as paredes do Parlamento com os retratos de todos os que já passaram pelo cargo. António de Spínola, Francisco Costa Gomes, Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio ou Cavaco Silva são algumas das figuras que dão nome aos retratos aí presentes. Em nenhum momento encontramos um retrato feminino.


“As mulheres têm de ser chamadas para a vida política e enquanto nunca tivermos uma presidente que represente todos os cidadãos e cidadãs, as mulheres vão estar sub-representadas, porque é isso que lhes estamos a dizer. Que numa presidência da república a mulher não tem lugar”, destaca Inês de Sousa Real.



Não termos ainda tido uma mulher na presidência é, para Marisa Matias “uma pobreza enorme, o que mostra o quanto estamos atrasados em termos de igualdade de género a vários níveis, mas em particular de cargos de representação ou cargos como o Presidente da República”.


Candidatas existiram e existem. Nas presidenciais de 2016, Marisa Matias, Maria de Belém e Manuela Gonzaga foram vozes ativas e fortes, o que não foi suficiente para serem escolhidas. É uma questão que vai para além da cruz no boletim de voto. “É a própria estrutura institucional e partidária que vai promovendo essa desigualdade”, refere Marisa Matias.


Um estudo de 2017, concluiu que 97% dos inquiridos estaria disposto a votar numa mulher para um cargo de presidência. No entanto, o máximo que uma mulher conseguiu nas presidenciais foi 10%. Este ano voltamos a ter duas candidatas— Marisa Matias, pela segunda vez e, a estreante, Ana Gomes. São rostos conhecidos e presenças ativas dentro do meio.


Apesar de continuarem a ser duas minorias no leque dos candidatos disponíveis, para Carla Cerqueira são exemplos que contribuem para abrir caminho à representatividade feminina em cargos políticos relevantes. “Só o facto de elas estarem e de se pode discutir isso publicamente já é vantajoso”, afiança.


Para Inês de Sousa Real, é importante que todos os partidos, principalmente os que têm mais filiados, “apostem finalmente as suas fichas numa mulher” e que o eleitorado siga a mesma lógica porque, acrescenta, “isso é sinal de que não temos ainda uma democracia saudável e a resposta ao que, de alguma forma consagre, aquilo que são os direitos, liberdades e garantias da nossa Constituição”.


Para que se consagrem os direitos expectáveis, são necessárias mudanças. Bebiana Cunha assegura que as candidatas estão à altura do atual Chefe de Estado. No entanto, considera que não será, de todo, uma luta fácil ou até quem sabe no mesmo “pé de igualdade”. Marcelo Rebelo de Sousa é uma figura bastante apreciada pelos portugueses e já tem provas dadas ao longo destes 4 anos de mandato. Nas últimas presidenciais conquistou uma percentagem de 52%, enquanto que Marisa Matias conseguiu apenas 10% - o que corresponde a cerca de meio milhão de votos.


Não obstante, para a deputada, eleger uma mulher seria bastante positivo. “No fundo seria a possibilidade de darmos aqui um passo civilizacional, até. Gostaria muito de ver uma mulher a ser Presidente da República”, conclui.


Deputadas e investigadoras destacam a diferença entre países como Alemanha, Paquistão, Reino Unido, Nova Zelândia, EUA ou Brasil— que apresentam marcas da igualdade de género— e Portugal, que continua a ser um país onde a política de cargos de maior importância só se faz no masculino, de “barba e bigode”.


O Problema das Autarquias


O caminho que a mulher tem de percorrer a nível local não é menor do que em qualquer outro setor governativo.



Nas eleições autárquicas de 1976, foram eleitas cinco mulheres para assumirem o cargo de Presidentes da Câmara contra 229 homens. Odete Isabel, na Mealhada, distrito de Coimbra e Francelina Chambel, no Sardoal, Santarém foram duas delas. Abasteceram a população de água e eletricidade, construíram escolas, uma rede de saneamento e criaram postos de trabalho, mas, num tempo onde encontrar uma mulher na política era impensável, não lhes foi reconhecido o mérito.


Atualmente, e tal como refere Assunção Cristas, ainda que tenhamos 32 Presidentes da Câmara, nenhuma exerce o cargo nas maiores autarquias. Já para não falar da diferença abismal em relação ao género masculino que chegou aos 279.


Ainda que o estatuto de cuidadora atribuído à mulher e todas as responsabilidades ao nível familiar que lhe são mais rapidamente associadas possam ser situações que limitem a presença da mesma em cargos autárquicos, a questão vai muito para além disso. Para a investigadora do ISCTE, Maria Antónia Almeida, o principal entrave é o tipo de recrutamento feito nas sedes dos partidos. “Os corpos digitais e concelhios dos partidos que elaboram listas e escolhem os candidatos parecem clubes só de homens. As mulheres só participam no jogo político depois das listas estarem fechadas e existe uma grande falta de mecanismos de supervisão nos partidos, tal como de secções femininas no interior da maioria dos mesmos”, afirma.


Nas palavras da deputada do PAN, Bebiana Cunha “Há partidos e partidos” e a presença da mulher nas autarquias ainda está muito dependente do partido a que pertencem.


A esquerda tende a apoiar mais o género feminino. No entanto, nem toda a esquerda o faz. “Os principais partidos, o PS e o PSD, que têm rodado no poder, são os que menos têm a preocupação de colocar mulheres nas suas listas”, assegura a investigadora Maria Antónia Almeida.


No que diz respeito ao PSD, embora a deputada Catarina Rocha reconheça que o partido tem poucas mulheres, rejeita qualquer entrave em relação à participação da mulher e à menor preocupação em coloca-las nas listas. “Dentro do PSD, não há qualquer entrave em relação a homens e mulheres e, se calhar, há outros partidos que têm estruturas que acabam por ser muito mais conservadoras e que são de esquerda”, afirma.


Para Catarina tem existido uma constante aposta na inclusão das mesmas através da academia de formação política para mulheres, que “tem ajudado a fortalecer e a preparar mulheres para a política” e na promoção da igualdade de género, que, frisa, “está no ADN do PSD”. “Não temos que andar aí de bandeiras porque é uma coisa que faz parte da formação e de todos os princípios que temos no nosso partido desde sempre”, assume.


Fotografia: Nuno Ferreira Santos/ Público


Se, por um lado, o centro-esquerda, com o PS conseguiu eleger, nas últimas eleições autárquicas, o maior número de mulheres Presidentes de Câmara— dezoito na totalidade—, por outro, o centro-direita, com o PSD, elegeu apenas seis. Número não muito distante das quatro mulheres eleitas pela coligação PCP/PEV.


44 anos depois de Odete e Francelina, Coimbra e Santarém elegeram, respetivamente, duas e quatro mulheres.


Quatro é, precisamente, o maior número de mulheres eleitas para as autarquias. Contudo, é um valor muito pouco replicado — só se registou nos distritos de Faro e Santarém— e muito reduzido quando comparado ao dos homens com, respetivamente, doze e dezassete nos municípios referidos anteriormente.


Nas primeiras eleições autárquicas pós-25 de abril, Odete e Francelina presidiram dois dos municípios com menor dimensão. Atualmente verifica-se o mesmo. São estes os que têm maior facilitismo em colocar uma figura feminina na secretária.


Por sua vez, concelhos de maior dimensão com maior número de eleitores como como Porto ou Lisboa, elegeram, respetivamente, três e uma mulher.


Para além desta disparidade presente em todo o território, ainda existe um total de sete autarquias que ainda colocam a mulher de lado. Em Viana do Castelo, Braga, Vila Real, Viseu, Guarda, Castelo Branco e Beja não há mulheres presidentes de câmara.

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