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Desafinados pela pandemia

Não é preciso ficar infetado pelo novo coronavírus para sofrer os seus efeitos. Sem concertos e com as salas de espetáculo fechadas, a indústria musical vê-se de mãos dadas com a crise. Os concertos online são a salvação, mas impedem que se cumpra o propósito da música: partilhá-la.

Ana Isabel Ribeiro (texto e fotografia), Ana La-Salete Silva (fotografia) e Ricardo Jesus Silva (vídeo)


Fotografia: Ana Isabel Ribeiro


“Quem não morrer de COVID, vai morrer à fome”. É uma frase que ressoa em eco nos nossos tímpanos há quase nove meses. É uma frase que serve para todos os setores que, de um momento para o outro, viram o trabalho na corda bamba.


A indústria musical é uma das que ficou na linha da frente das trincheiras. Foi estilhaçada em três tempos, antes de chegar à segunda partitura. Os soldados desta verdadeira cruzada “dão o peito às balas” para protegerem a música. Lutam sem parar, tentam erguer-se, mas já quase não têm forças.

Na quarentena, viram os cadeados fecharem as portas das salas de espetáculos a “7 chaves”. Com dós sustenidos, cheios de pena e fartos de serem ignorados pelos que governam, tentam seguir em frente.


Os poucos concertos marcados foram cancelados ou adiados. A fragilidade do setor foi revelada - tudo o que estava escondido pelas colcheias surgiu por entre as cinco linhas da pauta musical.


Músicos, técnicos de som, assistentes de palco, assistentes de sala, managers, produtores, roadies. Todos abandonados e sem respostas. Portugal, é conhecido pelos três F’s (Fátima, Fado e Futebol), mas, a pouco e pouco, restam só dois.


“Precisamos de continuar a comer”



Não são uma banda, nem são um grupo. Também não são recentes, mas são dos projetos musicais portugueses mais bem guardados.


Os Retimbrar são do Porto e constituem uma oficina de experimentação de sons. As fusões de ritmos modernos com outros tradicionais portugueses funcionam como uma máquina do tempo que transporta o público para algures numa fronteira entre o passado e o presente. Têm no folk a sua base, mas isso não significa que se fiquem por aí.


Tocam baixo, piano, flauta, ukulele, bateria, tuba e até fazem batalhas de castanholas. Pode não ser fácil definir-lhes os compassos, mas há algo que sabemos desde que começamos a entrevista: pertencem ao grupo dos músicos que viram o trabalho escapar-lhes das mãos por causa da pandemia.


2020 ia ser um grande ano. Iam voar alto, tão alto que iam ver Portugal lá do cimo num avião rumo a Macau para a tournée de junho que acabou por ser cancelada, segundo explica a vocalista Catarina Valadas. “Foi adiada para dezembro. Entretanto recebemos outra vez a notícia de novo cancelamento, adiamento… enfim, o que seja”, revela.


Ao cancelamento da tournée juntou-se o encerramento das salas de espetáculo e o adiamento dos concertos. “Em relação a abrirem salas, mais do que inteligente, parece-me importante. Temos aviões cheios, temos transportes públicos… A vida tem de continuar a acontecer de alguma forma. Claro que com as limitações todas e com tudo o que for possível e plausível de acontecer nesta altura, mas nós precisamos de continuar a comer, parece-me”, afirma Catarina.


A quarentena serviu de inspiração para muitos, mas este não foi o caso dos Retimbrar. “Quando se pôs a questão ‘pandemia’, pensei, genuinamente, 'vamos sacar aqui alguma coisa de positivo nisto. Se calhar é a altura ideal para conseguir compor a sério'. A verdade é que saiu tudo ao lado”, conta, entre risos. Durante meses, não compuseram nem criaram novos projetos. “Acabamos por ficar pelos arranjos de coisas que já tínhamos feito”, acrescenta a vocalista.


Sem apoios e sem espetáculos viveram tempos difíceis. “Foi a incerteza de saber se íamos manter os rendimentos ou não. "Não dá para arranjar novas formas de financiamento”, conta.


Fotografia: Ana Isabel Ribeiro


Longe dos palcos, sobraram para Catarina as aulas de música online para alunos de escolas públicas. Aulas essas que, antes destinadas a crianças, passaram a ser também para os pais. “Quando estás numa aula de piano, as crianças até podem saber que teclas têm de tocar. De repente estão em casa, não têm o professor para as orientar. Podem estar a tocar tudo certo mas quatro notas ao lado. A primeira meia horinha era para ensinar aos pais a base para depois orientarem as crianças”, revela.


Aos poucos os concertos começam a aparecer. São poucos, mas bons e diferentes. Para Catarina, o regresso dos Retimbrar aos palcos está a ser "incrível". A “sedinha”, como diz a própria, de voltar aos palcos vai desaparecendo a cada novo espetáculo. “Na primeira semana de desconfinamento fiz um concerto drive-in para carros… e pessoas dentro desses carros. Foi estranho, mas foi altamente”, realça.


“Os streamings e os concertos em direto são como beber cerveja sem álcool"


Fotografia: Gam Magazine


Salvador Sobral é dos poucos que não se pode queixar da falta de trabalho em plena pandemia. Durante a sessão na Web Summit, revelou ser “muito sortudo”. 2020 é o ano em que se multiplica. “Toquei com a minha banda a solo, lancei um álbum com música cubana, estou a interpretar Jacques Brel (…)”.


Na grande maioria, todos estes projetos se devem às várias obsessões que surgem dentro de si a cada dia. Obsessões essas que, conta, o “obrigam” a fazer logo os projetos. “Na semana passada fiz um sobre mariachis”. Compor todo o próximo álbum, que vai ser gravado em janeiro e prevê lançar em 2021, é o que se segue. “Se não resultar, se as minhas músicas forem uma porcaria, volto a interpretar só.”


Para o músico, o grande desafio de toda esta situação não é enfrentar a falta de trabalho - a agenda está preenchida até janeiro do próximo ano -, mas o facto de ter de o fazer à distância, o que choca com a ideologia do cantor de que “a música é para ser partilhada”, e recorrendo à tecnologia.


Durante a quarentena, Salvador transformou a garagem numa espécie de estúdio improvisado que serviu para gravar as novas músicas. Mas quanto ao material, num tempo em que era impossível sair para comprar qualquer tipo de equipamento, só restava a alternativa de encomendar online. Alternativa essa que não lhe agradou. A tecnologia não é o seu forte. “Sou bastante analógico”, conta. O ceticismo e o medo, que diz ter, levam a que não perceba nada do assunto, o que acaba por ser complicado com todos os projetos que tem vindo a desenvolver. “Estive a compor um álbum com um amigo meu de Barcelona, por isso fazíamos imensas chamadas no Skype. Ele comprou um microfone e um disco na Internet que vieram ter a minha casa, senão eu não comprava”, revela.


A tecnologia, nomeadamente a transmissão de concertos via streaming e os espetáculos em direto, funcionaram como “uma tábua de salvação” para que muitos músicos pudessem manter-se e divulgar os seus projetos durante a quarentena. Atualmente, ainda que não estejamos em quarentena, continuamos a enfrentar uma pandemia que coloca restrições em relação a tudo e o setor dos espetáculos não fica de fora.A probabilidade de ser infetado num concerto é muito baixa. Se esta é a maneira de podermos dar concertos, vamos a isso! “, salienta.


A fragilidade do setor leva a que muitos ainda estejam ligados a este tipo de opções. Salvador não é exceção. Diz ser melhor do que nada. No entanto, a escolha por esta alternativa não o impede de se sentir um verdadeiro "peixe fora de água". “Fiz streamings e concertos em direto e parecia que era um drogado à espera de tocar. São como beber cerveja sem álcool. Senti a adrenalina inicial, mas quando estava em direto, perdi-a”, afirma.



Esta perda da adrenalina acontece, porque a relação do músico com as pessoas também se perdeu. “Isto funciona com uma simbiose entre o músico e o público. Sem isso não resulta”, admite. Ainda que seja possível que assistam mais pessoas e que se vendam mais bilhetes, Salvador não sente que o futuro da música passe por isto. “Preferia ter só 100 pessoas físicas do que mais online”.


Para o músico, os concertos à distância são autênticos “coitus interrumptus”. O facto de estarem a assistir em casa faz com que as pessoas não sintam o ambiente de concerto. “É uma coisa psicológica”, conta. “Têm mais medo de reagir à musica, de cantar (…)”.

Por outro lado, os poucos espetáculos físicos são “boicotados” pelas máscaras que, opina, deixam as pessoas mais cansadas e com menos paciência.


O regresso aos palcos, na verdadeira aceção da palavra, é feito aos poucos. Este ano, fez apenas três shows e a experiência foi, nas palavras do cantor, “estranha”. “A cidade estava fechada e as pessoas vieram. Quando acabou a cidade estava vazia.”


Para já, resta um concerto “estilo Ray Charles” em Portugal, a digressão com a irmã, Luísa Sobral e a incerteza sobre a interpretação de Jacques Brel em França no dia 15 de dezembro (tudo depende das medidas que o Governo Francês anuncie até lá).


Um convite que aceitou com agrado e nervosismo. “Ainda há muitos críticos de música lá e são muito snobs. Tenho medo disso. Aqui podia enganá-los. Lá não”, revela entre risos.

“Adoro que me tenham convidado para o fazer. Em França, os portugueses são vistos como taxistas e consièrges [rececionistas]. Sinto-me com muito medo, mas acho que vai ser divertido”, conclui.


"Os músicos e artistas, com esta cena toda, ficaram no lodo!”


Já em Gondomar, encontramos os Vectis, uma banda de metal fundada em 2018. São quatro elementos — José, Gustavo, Daniel e Guilherme —, que decidiram criar um projeto quando ficaram todos na mesma turma no 10º ano. “Calhou de gravarmos aquilo em estúdio, onde ensaiávamos, só para brincar, e lançámos. Por acaso, colou e não estávamos à espera que fosse ter o impacto que teve. Depois, foi engraçado, foi uma bola de neve”, conta o baterista José Gomes.



Foi como uma bola de neve que ganhou cada vez mais força. Começaram a dar concertos, primeiro em sítios mais pequenos e intimistas e depois em locais mais conhecidos como o Hard Club. Mas a bola foi derretendo à medida que a pandemia avançou e, este ano, a situação rapidamente se complicou. "Os músicos e artistas, com esta cena toda, ficaram no lodo!”, revela José.


Fotografia: Ana La-Salete Silva


Tiveram a sorte de dar um concerto logo no início do ano. Concerto esse que acabou por ser o único. “Foi muito chato. Tínhamos acabado de lançar o nosso EP em março, tínhamos logo um concerto a seguir e foi tudo de rajada. A nossa banda ficou parada. Vendemos algumas coisas online, CDs, camisolas, mas o movimento foi completamente diferente do que seria se tivéssemos tido concertos”, acrescenta.


A venda online e o uso das redes sociais foram duas das alternativas que arranjaram para se manterem ativos e conseguirem algum apoio financeiro. Criaram “uma espécie de loja online”, como diz o baterista. “Fizemos algumas vendas e falámos com o pessoal… Foi engraçado. Olha, vamos fazer um giveaway de camisolas e CDs! É uma boa maneira de não morrermos no que toca às redes sociais e dar algumas coisas às pessoas é sempre um bom método de divulgação”, confidencia.


Com o metal a ganhar ferrugem, José aproveitou para criar uma editora, a Sacrifice Records, que, ao que tudo indica, está para durar. O confinamento imposto em março trouxe também a oportunidade para “tirar o pó” a um projeto já antigo que tinha deixado de lado, o Gallows Rites: “Neste momento, estou a criar isso em conjunto com mais dois amigos e estamos a levar isso para a frente. Pronto, foi aproveitar. Estávamos todos parados, e parar é morrer! Não se pode parar.”


Fotografia: Ana La-Salete Silva


Aos poucos, as bandas voltam a dar concertos, mas esta realidade ainda está distante para os Vectis. Voltar a pisar o palco, só em 2022. As restrições limitam o número de pessoas e colocam-lhes máscaras na cara, o que para uma banda de metal, acaba por ser como tirar um doce a uma criança. “Quando tocamos, e pelas pessoas que somos, gostamos é de contacto físico, de calor humano! Gostamos de estar com as pessoas e não de tocar para uma câmara ou para uma data de pessoas sentadas. Isso não dá pica”, declara o baterista.


Se a situação se mantiver, os músicos vão acabar por desistir. Vão abandonar as suas profissões ou as suas vidas. Não conseguem prever o futuro, não sabem quando voltam ao ativo. Esperam apenas não assistir ao funeral da música.

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