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Guel Do It: “A arte deve ser incluída em tudo. Deve estar na vida das pessoas.”

Atualizado: 20 de jan. de 2021

Nos últimos anos, a arte urbana tem conseguido mudar mentalidades e afastar-se do preconceito relacionado com o vandalismo. Em Setembro, surgiu uma proposta polémica do Ministério da Justiça: a criminalização do graffiti em comboios. Rui Vieira Cunha (texto) e Ricardo Jesus Silva (fotografia)


Arte urbana, uma inspiração para superar a pandemia


Antes da pandemia, o Centro Hospitalar Gaia/Espinho já estava a desenvolver um projeto de arte, com o intuito de “colocar o utente no centro do universo”. Foi nesse sentido que Guel Do it começou a colaborar com o hospital, mas a pandemia influenciou-o a criar um mural para contar, cronologicamente, a história de superação das crianças hospitalizadas.


No mural podemos ver crianças vestidas de “Super-Heróis", passando uma mensagem de “Superação” e que representa “o sonho de um dia serem eles os profissionais de saúde e serem eles a salvar vidas”.


O artista considera que o preconceito da sociedade em relação à Arte Urbana/Graffiti e a sua associação ao vandalismo resulta de uma “desinformação”. Para Guel Do It, murais como este ajudam a mudar mentalidades, já que os “trabalhos em espaços reconhecidos ou entidades públicas com algum peso...podem abrir um discurso em que a Arte Urbana seja vista de outra forma".


Guel Do It afirma que a Arte Urbana gera sempre algum preconceito, algumas reações sobre a utilidade das obras e o dinheiro gasto nelas, mas deixa o aviso “não é por ter pintado isto que os enfermeiros estão a receber menos”.


No que toca às oportunidades ou dificuldades dos artistas para sobrevirem, segundo Guel, deve haver mais proatividade e uma aposta na promoção por parte dos artistas, apesar de reconhecer a dificuldade que é “viver da arte, que é um mundo complicado, ainda para mais uma arte que há uns anos só era visto como algo ilegal”. Não obstante, realça que os artistas têm de se valorizar a si mesmos, “não fazer preços baixos” ou fazer os trabalhos “quase de borla”. A investigadora do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, Lígia Ferro, escreveu numa publicação do mesmo instituto, “Cadernos da Pandemia”, que “uma parte considerável destes artistas trabalha em regime semiprofissional, acumulando a atividade artística com outras atividades profissionais, para poder enfrentar o seu orçamento mensal.”


Guel Do It revela que a sociedade ainda desconhece a existência de mercado nesta área, de que “existem valores” e que “ainda há muita gente com a ideia de que isto é algo demasiado liberal, que não existem empresas a trabalhar”.


Relativamente ao preconceito que, por vezes, existe dentro do meio da arte urbana perante os artistas que colaboram com empresas multinacionais como é o caso de Guel, o artista revela que se sente “um privilegiado, por trabalhar com as melhores marcas que existem…”


Este artista ressalva, contudo, que o trabalho comercial que desenvolve “em quase nada se difere” do trabalho artístico, visto que existe um respeito das marcas pelo seu posionamento enquanto artista. Tendo isto conta, discorda da “ideia de a arte ter esse papel tão longe das empresas, das marcas, das pessoas, alternativo, underground. “e afirma que "a Arte deve ser incluída em tudo. Deve estar na vida das pessoas. Eu gosto de fazer isso”.


O artista trabalha para si mesmo. “Tenho a minha produção”, menciona, e usufrui da liberdade enquanto artista. O cliente é que “pode ser uma empresa ou um espaço cultural” e considera que cada vez mais “as marcas se juntam a iniciativas culturais”.


Impacto da pandemia no setor da arte urbana


Lígia Ferro, no artigo publicado no “Cadernos da Pandemia” do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, relembra que apesar do “progressivo reconhecimento” da arte urbana, “as trajetórias de trabalho destes artistas se foram construindo a partir da livre iniciativa, implicando frequentemente condições de incerteza e precariedade”.


O artista MaisMenos ,em entrevista à mesma publicação, revela que os apoios que ele e alguns amigos receberam rondavam os 100 ou 200 euros. No que toca a exposições, conta que apesar de muitas iniciativas e exposições terem sido canceladas, se abriu uma nova potencialidade: as exposições online, implementadas por algumas instituições.


A distinção entre Graffiti, Street Art e Arte Urbana


O graffiti corresponde à inserção de letras, nomes ou tags em paredes, de forma ilegal. Por seu turno, street art é uma tipologia também ilegal, mas as inscrições são de desenhos ou “bonecos”. Por outro lado, a arte urbana já é “concessionada” ou legal.


A arte urbana teve origem no graffiti e na cultura hip hop dos Estados Unidos, durante a década de 70 do século XX, e, segundo Lígia Ferro em “Cadernos da Pandemia”, foi “penetrando, progressivamente, nas instituições culturais.”


A investigadora conta que a participação de alguns artistas em campanhas publicitárias gera alguma polarização no meio, que originou a criação do segmento da Arte urbana. Este campo é, segundo Campos e Câmara citados por Lígia, uma “grande família composta por diferentes formatos, que passam pelo muralismo, o graffiti e a street art, incorporando igualmente elementos e propostas que provêm da arte contemporânea menos informal”.


Este facto não é esquecido por Guel Do It: “nós [artistas urbanos] temos o espaço que temos graças a esses artistas (os graffiters)“


O trabalho no Estádio Dom Afonso Henriques e o mural de Ricardo Quaresma


Em 2019, Guel Do It foi convidado pelo Vitória de Guimarães para pintar o estádio “praticamente todo”. Ao todo, foram cerca de 20 murais desenvolvidos pelo artista, que ajudaram a decorar a sinalética das entradas para os vários setores do estádio.


O artista encara a forma calorosa como o público vibra com o futebol como uma possibilidade para mudar mentalidades, esta foi uma proposta “arrojada”.


O que o artista urbano nota na sociedade é uma “aversão ao vandalismo”. “As pessoas ainda juntam muito esses dois lados e eu percebo, porque há um lado do graffiti que é vandalismo, e isso nunca vai mudar, nem as pessoas vão entender isso”, comenta.

A proposta de criminalizar o graffiti nos Comboios


Em setembro, o jornal Público anunciou a intenção do ministério da Justiça em criminalizar os graffitis nos comboios. Lígia Ferro assina um artigo de opinião no mesmo jornal, em que afirma que esta medida constituí uma incoerência entre as políticas nacionais e municipais em relação ao tema.


A investigadora alerta que, no seu trabalho de campo, nomeadamente na Galeria de Arte Urbana de Lisboa se apercebeu que, a nível municipal, existe um “aproveitamento da arte urbana para a promoção turística e económica, social, cultural”. Já a nível nacional, nota uma “tendência de criminalização e de ostracização”.


Lígia Ferro considera que a vertente de intervenção social devia ser mais implementada e dá como exemplo os projetos desenvolvidos nos EUA e no Brasil, em que os murais são usados na resolução de conflitos sociais nas “favelas” ou nas comunidades. Por cá, já se realizaram alguns projetos semelhantes por iniciativa de alguns artistas, como é o caso de VHILLS, que já há uns bons anos promoveu alguns projetos em bairros sociais, em comunidades mais excluídas. Comunidades negras, ciganas e que tem feito um pouco esse trabalho social em meios mais desprivilegiados”.


A professora lamenta que não exista “uma estratégia integrada, em que o governo ou até os próprios municípios olhem para esta ferramenta como algo que vale a pena utilizar para intervir nas comunidades, para as empoderar, para as fazer refletir sobre os seus conflitos e para as fazer chegar a consensos também quando é necessário.”


Lígia vai mais longe e considera que esta estratégia pode contribuir para a polarização da sociedade, numa altura em que se assiste a um recrudescimento dos discursos de ódio e da extrema-direita. A especialista percebe que a intenção seja limpar - reconhece que isso também é necessário e alerta para o facto de também os artistas quererem espaço livre para pintar -, mas defende um processo de limpeza concertado entre as autarquias e os artistas.


A investigadora fala na existência de brigadas que limpam umas obras mas não limpam outras, em que “é a própria brigada que decide quais são as boas peças e quais não são as boas peças de arte urbana”. Tendo isto em conta, Lígia Ferro defende que esta limpeza devia ser feita de forma concertada e que devia haver uma “consultoria de especialistas”. Para Guel Do It, a ideia da limpeza de obras deve ter um critério: “se é uma coisa ilegal e não querem aquilo, então limpem tudo, ou então que não limpem nada”. Este é um aspeto que faz confusão ao artista, que considera “muito ingrato haver uma seleção do que é que se pinta na rua”. No que toca à existência de uma limpeza concertada com os artistas, Guel discorda. Considera os graffitis e a arte urbana “uma expressão da cidade, dos artistas que passam pela cidade e que fazem graffiti ou arte urbana e têm a sua expressão e fazem-no de forma ilegal”. E realça que “uma coisa é estar no museu… e ter a curadoria de alguém que quer aquele artista, mas a rua é diferente, tem contornos diferentes”.


Assim, considera que não faz sentido limpar os graffitis (letras) e deixar ficar o que é “boneco”. O artista urbano vai mais longe ao afirmar que não tem legitimidade para decidir o que deve ser limpo ou não.



O autor do mural no centro hospitalar Gaia/Espinho concorda com os espaços legalizados para criação de graffiti que existe no Porto, em que “há uma série de paredes que qualquer pessoa pode ir lá pintar, qualquer pessoa, não há esse escrutínio de quem é vai lá”.

No que toca a criminalizar, Guel Do it concorda com a investigadora: “isso não vai acabar com nada”, porque quem grafita “não está preocupado com o que lhe vai acontecer”. O graffiti é uma “forma de expressão” que é composta por letras, em “escrever o próprio nome” e considera, por isso, que “não há propriamente uma forma de as fazer mudar”.


O artista concorda, contudo, que "aquilo que é feito na rua seja punido”, se os autores dos Graffitis forem apanhados. Segundo o artista, é aqui que reside a essência do graffiti: “adrenalina de ser apanhado”.


Guel Do It acha que o graffiti vai continuar a ter esta essência e espera que isso não se perca. Porque considera que é uma prática característica de pessoas mais jovens que, como aconteceu com ele, quando crescem direcionam o seu trabalho e pensam que no graffiti como um trabalho artístico. O artista urbano destaca a importância que esse processo teve para a sua carreira, pois só devido a ele “é que faz o que faz, da forma que faz e vive disso".


A mesma ideia é defendida por Lígia Ferro, que alerta para necessidade de "criar espaço e oportunidades para que aqueles que querem profissionalizar-se neste domínio o possam fazer, sem criminalizar aqueles que se estão a iniciar e encaram o graffiti como uma ferramenta de desafio ao sistema”.


A especialista dá o exemplo de Nova Iorque, onde a estratégia não funcionou bem, e "levou inclusivamente à morte de alguns writters, e todas as estações de metro foram, entretanto, vedadas com redes de electrocução, vigiadas com polícias e cães.”


Lígia conclui que a estratégia de criminalização implementa é também uma “estratégia de reforço da atuação policial”, que não acaba com o problema e apenas “contribuiu para o aumento de uma despesa brutal com o controlo ou limpeza das peças e aumentou a produção destas inscrições por toda a cidade."




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