A chegada à universidade é um período de transição marcante na vida de qualquer estudante que decida ingressar no ensino superior – e, num ano marcado pela pandemia de COVID-19, as portas abriram-se de uma forma diferente.
Ricardo Jesus Silva (texto) e Ana La-Salete Silva (texto e fotografia)
Os sapatos, os vestidos e os fatos de gala não saíram do armário este ano. As peregrinações polémicas a cidades espanholas não encheram os noticiários televisivos com colchões a serem atirados pelas janelas ou televisores nas banheiras. O adeus definitivo às escolas e professores foi precoce e agridoce.
A pandemia chegou a Portugal em março deste ano e desvirtuou os rituais de despedida, não só da secundária, como da própria adolescência de milhares de estudantes. Foram enviados para casa, com a esperança de voltar, passado uma quinzena, ao lugar a que, muitas vezes, não desejavam pôr os pés.
O tempo alastrou-se, bem como se dissipou a esperança de regressar. Pragmáticos, os estudantes decidiram olhar para o futuro e criar expetativas para que, ao menos, a entrada no novo ciclo das suas vidas – a faculdade – fosse diferente. Mas a pandemia voltou a cortar as suas esperanças pela raiz.
Beatriz Faria foi uma dessas estudantes. Nunca pôs em causa a entrada no seu curso de sonho por causa do novo coronavírus, até porque vive relativamente perto do Porto, onde está a estudar Ciências da Comunicação, na Faculdade de Letras. No entanto, confessa que o início “foi um bocado assustador, no sentido em que era tudo muito diferente.” O clima caloroso na receção aos novos alunos da faculdade, presente nos outros anos, esfriou, por causa das medidas adotadas no combate à pandemia. “Tinha um bocado de receio de não conhecer tantas pessoas, porque, de facto, nós não podemos ter a mesma convivência que temos numa situação normal”, afirma.
O regime de aulas adotado pela sua faculdade veio confirmar os receios de Beatriz. Com aulas presenciais numa semana e online noutras - num sistema de desfasamento de turnos em que, na primeira semana, os alunos de A a I vão à faculdade e os outros ficam em casa, enquanto, na segunda, o inverso acontece -, a única oportunidade que a estudante tem para conhecer os seus colegas de J a Z é pelas redes sociais.
João Maia tem o mesmo dilema em mãos. Os dois partilham o curso, mas o seu trajeto académico não podia ser mais diferente. Estava em Tecnologias de Comunicação Audiovisual na ESMAD, no Politécnico do Porto, quando decidiu que queria adicionar uma componente mais teórica e de escrita ao seu curso e, por isso, decidiu ingressar em Ciências da Comunicação.
Com uma bagagem mais cheia, já viveu momentos cruciais na vida académica de um estudante e, desta forma, considera ter a situação um pouco facilitada para ele – também em termos de integração.
As relações que estão a ser criadas, segundo o estudante, através do online, são superficiais - “são nomes que aparecem lá nos chats e afins” - e as que ainda se conseguem fazer presencialmente têm novas condicionantes.
Para Mariana Tavares, estudante de Relações Públicas no ISCAP, a máscara veio dificultar a socialização com os seus colegas de curso, mas não é por isso que se deixa de falar.
“É muito diferente conhecer as pessoas com máscara. Quando vamos comer e vemos essa mesma pessoa a tirar a máscara, a maior parte das vezes é totalmente diferente do que estamos a pensar. E claro, há reações nas pessoas que a máscara impossibilita de ver, e, aí, perde-se um bocado em termos de socialização”, afirma a estudante.
Se juntarmos à máscara uma outra forma de falar a língua portuguesa, aí temos todos os ingredientes necessários para a incompreensão. Quem o afirma é Isabela Franco. Natural de São José de Campos, no Brasil, os primeiros momentos da estudante em Portugal foram complicados.
Para chegar a Portugal, Isabela teve mesmo de vencer uma corrida contra o tempo. Com a pandemia a fechar serviços públicos também no Brasil, a estudante internacional teve de arranjar todos os papéis necessários à última hora para conseguir o seu visto para entrar e estudar no país. Já em Portugal, a máscara impôs uma barreira linguística, que, embora ténue, dificultou a sua integração, não só no país, como também na faculdade.
“Não entendia grande parte do que me diziam, e os outros também tinham dificuldade em entender-me”, confessa.
Os olhos podem ser o espelho da alma, mas, para Adelaide Telles, é o sorriso que “abre portas”. A psicóloga dos Serviços de Ação Social da Universidade do Porto (SASUP) afirma que é necessário ganhar uma “capacidade de adaptação passo a passo e não nos limitarmos a esta situação.” É possível estar-se a mais de dois metros de uma pessoa, tirar a máscara e poder ver os seus olhos e sorriso, mas Adelaide constata que as formas de socialização mudaram muito ao longo dos últimos anos e a pandemia apenas veio reforçar essas mudanças. “Eu vejo isso nas minhas consultas. Alunos que nunca tinham pensado procurar alguém no Tinder, agora fazem-no, frequentemente, porque perderam a capacidade de sair à noite, beber uma cerveja e conhecer pessoas novas”, reconhece.
A capa que não será traçada
Enquanto, em anos anteriores, as universidades eram sinónimo de diversão noturna, jantares de curso e festas académicas, a pandemia veio, mais uma vez, desvirtuar tradições e transformou-as no antónimo disso.
Para Beatriz, estas não lhe vão fazer assim tanta falta. Afirma ser uma pessoa “mais de casa”, mas admite uma certa curiosidade pelas mesmas e sente pena por não as poder experimentar, este ano letivo. É mais uma experiência que foi defraudada aos novos integrantes do ensino superior, que podem, agora, contar pelos dedos todas as oportunidades de integração que tiveram.
E a praxe não faz parte destas contas - pelo menos a presencial. Com a proibição de ajuntamentos para evitar contágios pelo novo coronavírus, as universidades, por todo o país, decidiram suspender ou cancelar as praxes presenciais, e os praxistas tiveram de se adaptar – viraram-se para o online, com o Zoom e o Instagram a serem os principais meios de comunicação.
Mariana teve, até agora, uma sessão de praxe pela Internet. Considera importante que estas iniciativas não morram, ou, pelo menos, fiquem em coma durante a pandemia, até para os caloiros não se sentirem “totalmente desamparados, fora do contexto e sem experiência nenhuma”. Para a estudante, a praxe “ajuda a compreender o funcionamento da instituição, pequenas tradições universitárias e, claro, a fazer mais amizades”, mas afirma que, o facto de ser feita pelo Zoom, é desmotivante. “Mesmo que eles marquem mais, eu não pretendo ir a todas, porque o facto de ser online… não é igual”, conta.
O contacto com alunos mais velhos do mesmo curso, que muitas se fazia nestes grupos académicos, também saiu prejudicado com a pandemia. Beatriz admite que ainda não conheceu ninguém de outro ano. “Posso até ter me cruzado com as pessoas, mas não faço ideia de quem é do meu curso ou quem é do outro”, afirma a estudante. No entanto, a ajuda tem chegado, de uma forma ou de outra.
E as próprias universidades têm encontrado maneiras de colmatar esta barreira. Isabela relembra a iniciativa de tutoria por parte da Universidade do Porto, criada, primeiramente, na Faculdade de Psicologia, e que depois se alastrou para quase todo o universo académico. A estudante internacional ainda não teve muito contacto com o seu tutor e, na mesma situação, está Mariana.
“No meu caso, ainda não tive contacto com o meu tutor, mas alguns colegas meus já tiveram. Já lhe mandaram mensagem e estão a ter uma boa experiência”, afirma a estudante de Relações Públicas. Este tutor está um ou dois anos à frente no ciclo de estudos e, para Mariana, “faz lembrar aquela ideia de padrinho da praxe ou grupos académicos”. Mesmo assim, considera que só para o ano é que vai poder ter um contacto mais profundo com os mais velhos – e o mesmo se aplica aos professores.
Ensinar duas audiências
Para aqueles cujo maior desafio era, em março, a adaptação do método de ensino para corresponderem às exigências de rostos já conhecidos, o novo ano letivo trouxe mais um teste: as novas caras, parcialmente cobertas por uma máscara.
Conhecer um professor desta forma “é estranho” para Mariana Tavares. Contudo, estes “são bem dispostos” e tentam “aliviar a situação”. “Quando algum vai beber água, faz sempre aquela piada do ‘estão a ver a minha cara pela primeira vez’”, explica a estudante.
Beatriz Faria diz já ter percebido que alguns professores têm o hábito de caminhar pela sala e contactar com os alunos, mas, na Faculdade de Letras, “os professores não se podem levantar”. Até agora, não teve “nenhuma atividade em que precisasse do professor e ele não se pudesse chegar” a si, mas pensa, ainda assim, que isso coloca um entrave na relação professor-aluno.
Por outro lado, João Maia nota uma falta de esforço, por parte de alguns professores, em conjugar “duas audiências” – a presencial e a que está em casa –, bem como pouca “preocupação em construir materiais de suporte”, apesar das dificuldades sentidas pelos alunos em acompanhar aulas em que “os professores tendem a divagar”.
“Acho isso uma falta de respeito por parte do professor. Se não há possibilidade, de ser assim, se ele só consegue dar aula para uma audiência, que mande tudo para casa”, opina.
Adelaide Telles, que está certa de que a pandemia veio potenciar um distanciamento “que não deveria existir já antes”. É uma situação inevitável, mas que traz consigo a oportunidade de “repensar formas, não só de ensinar à distância, mas também novas formas de comunicação”, conclui a psicóloga dos Serviços Sociais da Universidade do Porto.
Apoios sociais: mais e maiores
Repensar, mas não só a comunicação. O combate à pandemia leva-nos em direção a uma crise económica e social a velocidade de cruzeiro, e os seus efeitos já se fazem sentir nos estudantes universitários, inclusivamente os que acabam de chegar.
Neste sentido, uma das primeiras áreas de atuação foi a atribuição de bolsas de estudo, cujo regulamento foi adaptado. O diretor dos Serviços de Apoio ao Estudante da Universidade do Porto, Sotero Martins, explicou ao SATÉLITE o que mudou.
A bolsa de estudo é, agora, atribuída automaticamente a todos os estudantes do primeiro ano cujo agregado familiar esteja enquadrado no primeiro escalão do abono de família, bem como àqueles que concluíram um ciclo e optam por prosseguir (um estudante que acabe a licenciatura e vá tirar o mestrado, por exemplo).
O valor da bolsa mínima também foi aumentado – é, agora, de 871€ -, bem como o número de bolseiros. Segundo a página da Direção Geral do Ensino Superior, os beneficiários serão, agora, cerca de 80 mil, um aumento de 8 mil em comparação com o ano passado – certamente um benefício para os estudantes da Universidade do Porto, que estão, este ano letivo, a pedir mais bolsas.
Segundo Sotero Martins, em comparação com a mesma altura do ano passado, o número de candidaturas subiu ligeiramente.
E, para os que, por pouco, não conseguiram uma bolsa de estudo, os SASUP fornecem outras opções: “nós temos aqui um limiar de vinte e tal bolsas para dar aos estudantes, e nem precisam de se candidatar. Os que estão ali no resvés e foram recusados, digamos que num limiar de 500 euros, têm estas empresas. Isto é um trabalho que deve ter continuidade e, por incrível que pareça, há na sociedade agentes que estão disponíveis para dar estes apoios aos estudantes”, afirma o diretor dos Serviços de Apoio ao Estudante.
Os que “foram privados de tudo e continuaram”
Ao passo que alguns estudantes procuram teto, grande parte lida ainda com as represálias de três meses debaixo de um.
Para João Maia, habituado a sair de casa e à convivência, o confinamento “foi uma coisa muito dolorosa” e repentina. O regresso, também feito “às três pancadas”, mantém o isolamento social provocado pelas medidas de contenção promovidas pela DGS, o que acaba, segundo o estudante, por se tornar “problemático” para a saúde mental.
João não é novo no meio universitário e, para quem o é, a situação é ainda mais complicada. Segundo a psicóloga dos Serviços de Ação Social da Universidade do Porto, Adelaide Telles, “o deslumbre da faculdade, de festejar, de ser o primeiro ano” foi substituído por uma onda de desilusão que, para muitos, está acompanhada por preocupações como a morte de familiares e dificuldades económicas.
Uma consequência é a sensação de impotência, reforçada numa situação em que o distanciamento social leva à solidão, afirma. Segundo Adelaide Telles, isto culmina em situações de ansiedade que são, neste contexto, mais difíceis de tratar.
Beatriz Faria corrobora com a sua própria experiência, marcada pela dificuldade em conciliar o novo mundo da universidade com a vida pessoal, agora que a separação entre eles é tão ténue – “é sempre difícil quando temos de lidar com várias coisas ao mesmo tempo em casa”. Acrescenta ainda que a saúde mental é um assunto pouco valorizado em Portugal e que, “assim como se fazem rastreios para o vírus ou para qualquer outra doença, também deviam fazer rastreios para a saúde mental”.
Na Universidade do Porto, o esforço é grande para que a saúde mental não seja um tabu. Com a pandemia, o número de pedidos de consultas de psicologia e psiquiatria aumentou significativamente e, num contexto excecional, os SASUP suspenderam das taxas de acesso à saúde para todos os estudantes e implementaram consultas online.
Sotero Martins explica que “houve uma quebra, por exemplo, na clínica geral e nas outras especialidades, mas na psicologia aumentou”. Já Adelaide Telles, pertencente ao grupo de psicólogos que garantem este serviço aos estudantes, afirma que está habituada a uma “avalanche” de “primeiros casos de alunos do primeiro ano”, mas percebeu um aumento de pedidos de ajuda por parte de quem já tinha tido alta. Contudo, os alunos internacionais pediram menos consultas, mesmo que, segundo relembra a psicóloga, se enfrentem “com o mesmo meio e dilemas”.
Adelaide Telles diz ainda sentir uma diferença entre o online e o presencial e destaca a necessidade do último nas primeiras consultas
Com os recentes progressos na busca por uma vacina, o regresso à normalidade parece estar cada vez mais perto e, para João Maia, isso significa o verdadeiro início da construção de relações entre os novos estudantes. Será como conhecer toda a gente de novo, e é a esperança de obter, futuramente, este calor que alimenta os alunos que chegam pela primeira vez à faculdade.
Por enquanto, resta-lhes a adaptação – para além da máscara e do desinfetante.
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