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Elas, as intrusas

Atualizado: 14 de jan. de 2021

A presença do rosto feminino na esfera política é, ainda hoje, condicionada por estereótipos de género. Num Portugal cicatrizado pela Ditadura, mantém-se a ideia de que elas são intrusas neste mundo tipicamente masculino.

Ana La-Salete Silva (texto)


Inês de Sousa Real, deputada do PAN. Fotografia: Fábio Pinto


Era uma vez um Portugal, aquele país pequenino na Península Ibérica onde tudo parece chegar com anos de atraso. O fim da era ditatorial não foi exceção: a Ditadura Salazarista foi a mais longa da Europa. Hoje, ainda vivem muitos dos que viram a política a ser dominada única e exclusivamente por homens letrados. Hoje, ainda vivem as que não podiam votar.


E com estas pessoas marcadas por uma ditadura, vivem os estereótipos de género que insistem em retirar a credibilidade a qualquer mulher que tente enveredar pela área da política. Quem o diz é Carla Cerqueira, investigadora da área de género e media, na Universidade do Minho, ao ser questionada pelo SATÉLITE relativamente ao tema.


“A esfera político-partidária tem sido sempre apresentada e tem estado conotada como uma esfera tradicional associada aos homens, ao masculino, a características que são construídas muito associadas àquilo que é a masculinidade. Portanto, o que acontece é que as mulheres que entram nesses cargos, muitas vezes, são encaradas como sendo uma espécie de intrusas que entraram numa área que não é muito tradicional”, explica.


Mesmo que, atualmente, não impeçam a participação feminina na política, a perspetiva estereotipada, que a sociedade tem delas, coloca-as numa situação em que precisam de provar que têm características normalmente atribuídas aos homens para que possam ser eleitas – têm de mostrar que são capazes, e fazer um maior esforço para tal. Segundo Carla Cerqueira, “aquilo que lhes é exigido é muito superior ao que é exigido aos homens”.


Os traços que o eleitorado associa a um bom político – assertividade, racionalidade, capacidade de tomada de decisão – são, muitas vezes, perspetivados como algo exclusivamente masculino. As mulheres são tendencialmente vistas como mais sensíveis e sentimentais e, para Inês de Sousa Real, “muitas vezes confunde-se sensibilidade com fraqueza”.


“É importante, quando falamos de política no feminino e quando falamos de sensibilidade ou de uma capacidade, se calhar diferente, de mostrar as emoções ou de mostrar a nossa empatia para com determinadas causas, que isso não seja confundido com fraqueza, porque não é pelo facto de as mulheres terem sensibilidade para determinado tipo de direitos, nomeadamente os sociais ou humanos, que depois não temos a mesma capacidade para analisar relatórios financeiros, contabilísticos, seja de que natureza forem”, afirma a líder de bancada do PAN, em entrevista ao SATÉLITE.


Ainda assim, com a capacidade, vem a insegurança. “As mulheres fazem um autoquestionamento porque elas são muito mais escrutinadas por tudo aquilo que dizem e, muitas vezes, não se sentem confiantes. Elas têm medo de estar, têm medo de fazer um comentário político, um discurso público”, na opinião de Carla Cerqueira. Segundo a investigadora, este fenómeno já existia na Grécia Antiga, onde só alguns homens é que tinham direito à palavra, e manteve-se enraizado na sociedade até aos dias de hoje.


Isto verifica-se na experiência de Beatriz Gomes Dias como deputada do Bloco de Esquerda. Sendo mulher (e negra), apercebeu-se que “o espaço público é ocupado de forma muito mais espontânea pelos homens” e fez um esforço ativo e consciente por começar a pedir a palavra, “para poder quebrar este silenciamento”. A deputada conta que teve de “encontrar estratégias para ativamente contrariar essas conceções”, acrescentando que “para isso, é preciso aprender com outras pessoas que estão a fazer o mesmo caminho” e com quem estuda o fenómeno.


Além de intrusas, rottweilers


Ana Gomes, candidata às Eleições Presidenciais. Fotografia: José Sena Goulão / LUSA


Uma mulher quer-se no seu canto. Aquelas que falam, têm, ainda, de ter cuidado para não caírem em estereótipos.


Beatriz Gomes Dias passa a exemplificar: para um homem, ser “ambicioso e assertivo é considerado como uma caraterística positiva”. O mesmo não acontece no caso das mulheres. “Há todas estas características que, na minha opinião, são consideradas características positivas para um homem e, para as mulheres, são muitas vezes tidas como características bastante negativas”, nota.


A verdade é que a assertividade de uma mulher é, muitas vezes, confundida com agressividade. A investigadora Carla Cerqueira corrobora este facto ao refletir sobre o contexto atual, em que Ana Gomes, candidata a estas Eleições Presidenciais, ganha destaque.


“A Ana Gomes é uma das mulheres políticas em Portugal que, por ter uma postura extremamente assertiva - e isto não é de agora -, tem sido muito escrutinada na esfera pública. Ela é vista como agressiva. Na assertividade dela, há um entendimento, pelo facto de ela ser mulher, que a conota à agressividade. O mesmo não acontece de uma forma equivalente quando se trata de um homem. Aliás, ela aparece como sendo uma “rottweiler” na política”, relata.


O mesmo acontece com Marisa Matias e Dilma Rousseff. Ao manterem uma “postura de autonomia e independência” que não corresponde à norma, estas mulheres são vítimas de crítica, como observa Carla Cerqueira.


Para Beatriz Gomes Dias, esta é mais uma pedra no caminho para a igualdade: “acho que a igualdade de género passa por permitir que as mulheres se manifestem e se afirmem na política. Quer sejam mais combativas, quer sejam mais afirmativas”.


Os media como impositores de estereótipos


Carla Cerqueira também traz à discussão “o peso e o papel que os media têm na forma como representam e fazem a cobertura noticiosa destas mulheres”, afirmando que há muitos estudos que comprovam que a representação mediática “corrobora, na maior parte dos casos, o estereótipo”, o que “contribui para que não se produza uma mudança social nesse sentido”.


Um desses estudos é o de Carla Martins. No livro “Mulheres, Liderança Política e Media, aborda a forma como os meios de comunicação refletem as resistências ao “acesso das mulheres a um universo tradicionalmente masculino”. O jornalismo privilegia a prática da política como uma atividade masculina, naturalizando “a noção de que o masculino é a ‘norma’ e as mulheres o ‘outro’ na política”. Numa tentativa de “manter as mulheres no lugar certo”, os jornalistas tendem a destacar o seu género, antes de as representar como políticas.

E Marisa Matias concorda: “há diferenças”, no sentido em que o jornalismo aceita “com muito mais naturalidade” comportamentos atípicos, como “despir-se para levar uma vacina”, se estes vierem de um homem.


Por outro lado, a obra constata que há casos em que “a ascensão das mulheres a lugares de liderança política pode também ser representada como simbolizando um avanço importante e positivo para a população feminina”.


O impacto deste tipo de representações é, para Carla Cerqueira, “muito grande”, a partir do momento em que os media são “formadores de opinião pública”, num contexto em que o pensamento da maior parte das pessoas é moldado pelo enfoque das notícias. “A maior parte das pessoas forma a sua opinião, mas não é ao lerem recortes eleitorais, não vão pesquisar”, esclarece. À conta disto, a investigadora está certa de que é possível que raparigas e mulheres “criem resistências em seguir a carreira político-partidária”, com medo de serem mal vistas.


Bebiana Cunha acrescenta que estas tendências são “inconscientes”, por estarem “enraizadas na sociedade”. E isto não anda de mãos dadas com o papel que, para a deputada do PAN, os media, como influenciadores de opiniões também no eleitorado político, devem ter – “combater as desigualdades de género” e contribuir para o “evoluir da sociedade”.


Ainda assim, nem todas as experiências são negativas. Catarina Rocha Ferreira, deputada do PSD, revela que, no seu caso, os media sempre foram "corretos" e a sua presença no Parlamento nunca foi representada desta forma.


Uma questão de estética


É facto que os padrões estéticos são impostos com mais força às mulheres e, para as que vivem no espaço público, nomeadamente na política, torna-se noutro entrave. Aqui, até a feminilidade se torna num problema.


De acordo com Carla Cerqueira, as que assumem um visual conotado com o masculino são colocadas “numa ótica de serem bastante neutras”, pois “o que se espera de uma mulher na esfera da política é que ela seja muito cinzenta e que use fatos parecidos com aqueles que os homens utilizam”.


Quando tal não acontece e a mulher na esfera política opta por corresponder ao ideal de feminilidade, a objetificação entra em jogo. “Quando têm essa fusão dos traços de feminilidade, elas são muito escrutinadas por isso”, nota a investigadora, e dá o exemplo de Maria de Belém, candidata às Eleições Presidenciais de 2016. “Por ser muito baixinha e usar o cabelo muito arranjado, as imagens que apareciam dela nos media eram muito em torno disso. Até a chegaram a chamar de Barbie”, relembra. Fala também de Catarina Martins, que, ao assumir a liderança do Bloco de Esquerda, foi alvo de notícias sobre a roupa e as sapatilhas que usava. O papel dos media é, mais uma vez, acentuado.


“No caso das mulheres, tentam pegar por estes diversos pontos, mostrando que elas têm um posicionamento de intrusas, ora porque não sabem ou não é a sua esfera tradicional, ou então assumindo que elas têm de ser uma espécie de super-mulheres – note-se o caso da Assunção Cristas. Numa notícia, diziam que ela bebeu um pacotinho de leite no Parlamento, porque não sabia que aquilo não se podia fazer. Uma pessoa tem de perguntar: será que eles escreveriam uma coisa desse tipo se fosse o Paulo Portas?”, conclui.


Super-mulheres


Assunção Cristas, ex-presidente do CDS. Fotografia: José Sena Goulão / LUSA


Independentemente da representação noticiosa de que foi vítima, falar de líderes políticas que se coadunam com o expectado e mantêm o tradicionalismo é falar de Assunção Cristas. Carla Cerqueira destaca o facto de a antiga líder do CDS ter personificado perfeitamente “o que é a conciliação família-trabalho”. Contudo, Cristas dizia que apenas conseguia conciliar a política com a vida pessoal “porque tinha muito apoio”. “Temos de pensar que efetivamente há aqui outras pessoas que estavam muito presentes. Eram elas que permitiam que ela tivesse esse posicionamento e esse espaço para a liderança”, reflete a investigadora.


O estigma de que as mulheres não estão aptas para os cargos políticos remete para a conceção de que a função delas reside no domínio privado – têm de cuidar da casa e dos filhos. Marisa Matias destaca o facto de 80% dos cuidadores informais serem mulheres, sendo que “ainda existe uma distribuição muito desigual das tarefas, porque ainda se associa mais às mulheres as tarefas domésticas, dos cuidados”. E isso “tem um peso na forma como se olha” para elas em “outras funções”.


Às que querem fazer política, a sociedade continua a impor este papel, obrigando-as a conciliar os dois campos, segundo Inês de Sousa Real. “Quando um homem está prestes a ser pai, ninguém lhe pergunta como vai conseguir compaginar isso com a sua vida política. Se for com uma mulher perguntam, até mesmo no acesso a um cargo de trabalho”, admite. A deputada do PAN acrescenta ainda que, por ainda não ser mãe, é-lhe muitas vezes questionado quando vai “dar um neto” aos pais, mas considera-se uma “privilegiada” por, tal como Cristas, ter quem a auxilie nesta conciliação.


Ter uma rede de apoio é também relevante para Bebiana Cunha, que afirma estar “bastante bem rodeada de pessoas que percebem a importância” do seu papel na sociedade. Ainda assim, este não é, ainda, bem encarado por alguns – a deputada confessa que já recebeu mensagens que, apesar de diferentes, se resumem ao mesmo: “vai para casa, que o teu lugar é em casa”.


A gestão de dois mundos foi um problema consistentemente mencionado também por Catarina Rocha Ferreira, ao longo de toda a entrevista ao SATÉLITE. Mãe de uma menina de oito anos, considera que ainda são conservados "muitos papéis tradicionais" que dividem a mulher entre o doméstico e o profissional.


"A mim, mulher, desde que souberam que eu era deputada, muitas vezes me perguntaram o que é que eu ia fazer com a minha filha. Outros colegas meus que são homens, que até têm dois ou mais filhos, também tomaram a decisão de ser deputados e nunca ninguém lhes questionou o que é que iam fazer com os filhos. Ninguém se preocupa com essa questão", acrescenta.


A investigadora Carla Cerqueira destaca ainda que a atribuição deste tipo de papéis às mulheres pode ser prejudicial também para eles: “existem muitos homens em cargos de grande poder que também gostariam de estar mais dedicados à esfera do cuidado. E a sociedade penaliza-os nesse sentido. Eles também sentem, muitas vezes, represálias quando têm discursos públicos em que mostram que essa esfera do cuidado e das emoções é importante. Porquê? Porque é uma esfera que continua a ser associada às mulheres. É como se tivéssemos aqui uma espécie de dois mundos separados.”


Para que isto deixe de ser um problema, são necessárias mudanças. Para Catatina Rocha Ferreira, "quanto mais o papel que é tradicionalmente reservado às mulheres for dividido com os homens e a mulher tiver outro apoio, outra retaguarda, que, tradicionalmente, não tem, mais fácil é as mulheres desempenharem outras funções políticas."


E Beatriz Gomes Dias concorda: "também é preciso esta mudança cultural que irá fazer com que as tarefas sejam mais distribuídas entre os homens e as mulheres, o que poderá permitir ou criar condições para que possam ter uma participação política mais ativa do que conseguem ter atualmente”.


Quando for grande, quero politizar-me


E as mudanças começam desde cedo. Carla Cerqueira defende que desconstruir estereótipos de género “tem de partir da educação” das próprias crianças, “porque estas formas divididas, diferenciais e assimétricas de ver o mundo vêm antes do processo de socialização e depois é isso que reproduz essas desigualdades que vemos no mundo da política e noutras esferas”.


Interiorizando o papel de cuidadoras, as mulheres “acabam por reproduzir esses próprios papéis de género” e assumem uma “visão do mundo em que os rapazes estão muito mais conotados e assumem posturas, papéis que estão associados ao domínio público e a tudo o que está associado com o público, e as raparigas com o privado”. Esta visão é projetada, segundo a investigadora, para os mais novos, influenciando, posteriormente, as suas escolhas vocacionais.


As próprias histórias que são contadas aos mais pequenos devem incluir “mulheres em cargos preponderantes”, para que as meninas vejam que isto é realmente possível e a mudança ocorra nas próximas gerações.


Aos mais graúdos, Beatriz Gomes Dias recomenda a politização. Para a deputada do BE, é isso que nos fornece “os instrumentos para pensar criticamente sobre a realidade” e sobre as construções de género. “Ao percebermos que são construções, ao termos chaves de leitura para as interpretar, criamos mecanismos para as desmontar”, explica, acrescentando ainda que é assim que cada um de nós consegue ganhar a capacidade de desconstruir “o estereótipo e as conceções ideológicas que mantêm o patriarcado”.


A deputada destaca, por isso, a importância da literacia política, para que não se naturalize o que “não é natural”, como é o caso dos papéis de género, e se possa construir uma sociedade mais progressista.

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