Sem qualquer proteção da Justiça, Mariana Ferrer passou de vítima a réu. Seria uma situação chocante, se não acontecesse diariamente.
Ana La-Salete Silva (texto)
Não há ninguém que não conheça a história de Medusa, deusa da mitologia grega. Possuidora de uma beleza rara, foi violada por Poseidon, senhor dos mares, situação que enfureceu Atena. A última castigou-a, condenando a vítima à sua própria desgraça ao fazer dela um monstro com cabelo de serpentes que transformava em pedra toda a gente que se atrevesse a encará-la.
Chamam-lhe lenda, mas de ficção não tem nada – todos os dias, esta história repete-se, num mundo em que qualquer mulher é Medusa. Mariana Ferrer foi só mais uma.
Após ter denunciado um ato de violação, durante o qual estava dopada, a influencer brasileira viu o empresário André de Camargo Aranha sair da situação como inocente, sob o argumento de uma “violação culposa”. Segundo a Justiça, o réu não tinha forma de saber se Mari estava ou não em condições de praticar o ato sexual. O silêncio foi um “sim” e, em 2020, o sistema falha a reconhecer o quão errado isto é.
Durante o julgamento, não julgaram o culpado, mas sim a vítima. Ignorando uma série de provas obtidas pela polícia, o advogado de André optou por usar meras fotografias consideradas “sensuais” de Mariana para tentar justificar a atitude do empresário.
Fotografias. Apenas fotografias. Na mente de um violador e de quem o defende, bastam fotografias para motivar um crime, como se homens fossem obrigatoriamente selvagens que não se controlam e isto não se tratasse, na verdade, de uma questão de poder. André de Camargo Aranha fê-lo simplesmente porque podia. Porque cresceu rodeado de quem lhe dissesse que as mulheres são suas para fazer com elas o que bem entender, e a ver na televisão uma Justiça que corrobora exatamente isso – ao ponto de criar contradições como a de uma “violação consentida”.
Mariana Ferrer fez o que nos é dito: denunciou, com provas incluídas, na esperança de obter justiça, e o Ministério Público não a protegeu. Sentiu na pele o poder que a cultura da violação, na qual uma saia curta é consentimento e uma grande parte dos culpados vivem sem qualquer consequência, ainda tem. As redes sociais chocam-se com este caso em particular, mas situações de violência de género têm vindo a repetir-se desde sempre – Portugal mais que incluído. Num país onde 46% dos homicídios cometidos em 2019 foram em contexto de violência doméstica (quantas delas não terão denunciado?), continuamos, no final de contas, a dar palmadas nos ombros do Cristiano Ronaldo.
Vai dos agregados familiares ao sistema de justiça, passa pela economia e pela política. A normalização silenciosa do machismo é-nos oferecida às colheradas desde a infância, e nós engolimos sem questionar. Quando uma mulher decide levantar a voz, o mundo cai em cima dela.
E é por isto que tantas se calam.
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