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"Somos agentes culturais, considerem-nos como tais"

Foto do escritor: jornalsatelitejornalsatelite

Atualizado: 20 de jan. de 2021

#Aovivooumorto. Centenas de pessoas formaram fila pelas ruas do Porto para apelar a que o Governo não deixe morrer os espaços de programação musical. A manifestação repetiu-se em Lisboa, Évora e Viseu.

Ricardo Jesus Silva (texto e vídeo) e Ana La-Salete Silva (fotografia)



A fila forma-se, mas a porta não abre. Os instrumentos estão presentes, mas a música não toca. Os manifestantes seguram cartazes, mas não gritam palavras de ordem.


Foi desta forma que a associação “Circuito”, composta por 27 salas de programação de música, decidiu conduzir a manifestação #Aovivooumorto, que luta pela sobrevivência destas a nível nacional. De 2 em 2 metros e máscaras colocadas, várias pessoas alinharam-se, este domingo, pelas ruas das cidades de Lisboa, Porto, Évora e Viseu, e insurgiram-se contra a falta de apoio por parte das autarquias e do Estado a este setor e à cultura no geral. Mas sem uma única palavra.

Os manifestantes deixaram que o silêncio da fila falasse por si próprio. Armada apenas com cartazes e t-shirts com o nome do evento, esta luta muda pretende demonstrar o futuro das salas de programação de música caso não tenham apoios. Um futuro que pode estar mais próximo do que se antevê.


No Porto, a fila começou a formar-se pouco depois das 15h, em frente ao “Maus Hábitos”, e percorreu centenas de metros até chegar à Praça da Batalha. Para Daniel Pires, gerente dos “Maus Hábitos” e um dos fundadores da associação “Circuito”, as medidas apresentadas no Orçamento de Estado para 2021 (que contemplam apenas 0,39% dos fundos para a Cultura, o que se traduz em cerca de 563,9 milhões de euros) são insuficientes e tardias. “Ainda faltam muitas medidas e, principalmente, ainda não chegámos à conversa com as autoridades e os nossos governantes e autarcas. Pedimos para ser os interlocutores deles para encontrarmos uma solução para os problemas deste setor.”


Em primeiro lugar, Daniel Pires diz que é necessário que os donos destas salas sejam considerados como agentes culturais, e não apenas empresários da noite com bares. A partir daí, pode falar-se das reinvindicações da associação, que, segundo o site da "Circuito", preveem a "criação de um programa imediato de investimento nas salas" da mesma, bem como uma "disponibilização de programas de apoio à criação, programação e circulação artística", entre outras.


O ritmo tímido em que têm operado as salas de programação de música não é suficiente para colmatar os gastos e a situação está “impraticável”, segundo Daniel Pires. “Nós usamos os bares para pagar as nossas estruturas, porque sabemos que, ao fazer concertos, esses concertos não se pagam a eles próprios. É impossível. Mesmo com 200 pessoas numa sala, muitas vezes não conseguimos colmatar o custo de fazer um concerto.”


A fila no Porto às 16:01h

Um compasso de espera

É importante que estas salas continuem a latejar, tanto para a sua sobrevivência, como para as dos músicos e técnicos que nelas operam. Para Valter Lobo, cantor de profissão, a pandemia trouxe vários cancelamentos, mas, agora, a sua missão é ajudar aqueles que não estão numa posição tão privilegiada como a sua, aqueles que não conseguem encontrar outras formas de se sustentar. E associações como a “Circuito” são uma arma importante para “fazer algum peso para o lado dos músicos deste setor”.


Exemplo disso é Carlos Jesus, segundo da fila, que não recebeu qualquer tipo de apoio durante o estado de emergência. Mas o cantor vê o futuro com alguma esperança, muito devido à força associativista fomentada por este tipo de associações. “É preciso promover a união, estarmos todos juntos nesta luta e tentar ganhar algum apoio para as salas, como para os artistas. Tentar mudar o paradigma e finalmente apoiar a arte.”


E se solidariedade é um dos ingredientes necessários à sobrevivência destes espaços culturais, Manel Cruz promete não parar de batalhar. Até porque “os ‘Ornatos’ não seriam nada se não houvesse estes bares. Essa é a nossa memoria, a nossa nostalgia, o nosso berço, a nossa vida. Sempre.”


O ex-vocalista dos “Ornatos Violeta” considera que, embora impere uma desvalorização da cultura, em Portugal, a situação agrava-se quando se fala no setor das salas de programação de música – “é um setor esquecido.” É necessária, então, uma consciencialização a nível nacional para que, tanto Estado, como cidadãos, percebam a importância destes locais, que “são o berço de todas as bandas e projetos que toda a gente gosta de ouvir.” “As coisas não acontecem por magia e, ao nível político, deve haver essa noção do prejuízo nefasto que é para a cultura geral”, remata.



“Uma questão de cidadania”

Mas os artistas e gerentes destas salas não se encontram sozinhos na luta. Grande parte da fila criada no Porto é composta por pessoas anónimas, que têm o seu trabalho noutro setor, mas que se recusam a ver estes espaços emblemáticos morrer. Até porque consideram que a morte das salas pode mesmo significar a morte da música portuguesa.


É o caso de Pedro Ribeiro, estudante de Comunicação Social. Encontra-se nesta fila “por uma questão de cidadania.” Já Cláudio Ferreira, também ele estudante, fá-lo pela compaixão que tem para com o movimento, pelo “respeito pelo trabalho que as pessoas foram depositando durante anos.”


Para ambos, a cultura ganhou ainda mais importância com a chegada da pandemia. Serviu e ainda serve como uma forma de “tratamento psicológico”, devido ao pânico social gerado. “É importante que a arte traga uma dimensão que a ciência não tem, que as pessoas não estão tão habituadas a ter. Especialmente em Portugal, onde é ainda um pouco desvalorizada”, afirma Pedro.


E essa desvalorização é feita também pelo Governo, segundo Cláudio. O estudante não consegue compreender as várias incongruências em termos de apoio que existem entre os setores. “O setor do entretenimento e cultura está a ser muito prejudicado nesse sentido.”


Passado pouco mais de uma hora a fila começou a desmobilizar, por ordem dos organizadores. Se dependesse de alguns manifestantes, esta continuaria até o Estado e autarquias falarem com a organização e, juntos, encontrarem soluções para a fragilidade em que se encontra o setor. Seja por valorizarem a cultura como instrumento de educação, sensibilização e divertimento ou por a sua vida depender disso, os cartazes continuariam erguidos, as bocas fechadas, as filas formadas. Nunca uma luta foi tão silenciosa.

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