Durante os três dias da Web Summit, discutiu-se o poder social dos filmes e videojogos, como este foram afetados pela pandemia e as pontes que estes permitiram criar.
Ricardo Silva (texto)
Ilustração: Google
Durante as últimas décadas, o mundo cinematográfico e dos videojogos têm evoluído ao lado da tecnologia e possibilitado um nível de imersão inimaginável. Desde criar comunidades, comentar assuntos sociais e mostrar realidades adversas ao nosso quotidiano, estas duas formas de entretenimento há muito que deixaram ser uma ocupação superficial dos nossos tempos livres – se é que alguma vez o foram.
Num ano marcado pela pandemia, estes dois mundos ganharam uma maior preponderância na vida das pessoas, embora em moldes um pouco diferentes, e o Web Summit não ficou alheio a esta realidade – e a como a tecnologia ajudou a trazê-los mais perto dos seus consumidores.
Uma ponte entre mundos
Há muito que um videojogo deixou de ser um cartucho que se tinha de soprar para funcionar na Gameboy e que não permitia mais do que um jogador por sessão.
Num mundo cada vez mais conectado, foram-se criando comunidades de jogadores que não só partilham estratégias e modos de jogo, como também conhecimento, experiências e práticas culturais. Virgil Abloh, designer de moda da Louis Vuitton, define-os como uma “auto-estrada” social, que não podia ser contruído de outra forma.
No entanto, também constituem uma forma de nos expressarmos a nós mesmos – e a sua personalização tem aumentado esta realidade. Quem o diz é Cam Wolf, jornalista da GQ, que acha curioso como temos grupos diferentes na vida real e na vida digital, mas queremos ser vistos e, até, vestirmo-nos da mesma maneira. As pessoas querem ver-se cada vez mais a si próprias neste mundo – é uma simulação.
Segundo Jeans Hilgers da Bitkraft Adevntures, isto é possível por duas grandes razões: a crescente acessibilidade deste mundo, que está, agora, presente nos bolsos e malas de cada pessoa, através dos smartphones; e o aumento da fidelidade, através do desenvolvimento de tecnologia, como a Inteligência Artificial, que tornam a experiência muito mais imersiva.
Mas se o mundo dos videojogos está assim tão próximo e cada vez mais entranhado em nós, como é que o podemos separar da vida real? Para Jeans Hilgers é cada vez mais uma tarefa árdua. “Nós acreditamos que os videojogos são feitos de simulações e que a vida real está a fundir-se com estes. Outras gerações não tiveram a mesma oportunidade; tinham uma linha que os separava. Agora, está enevoada”, conta.
E se as consequências negativas desta falta de separação podem parecer alarmantes, as positivas eclipsam-nas. Exemplo disso é jogo “Mission 1.5”, também apresentado na WebSummit, que nasceu de uma parceria entre a Playmob e as Nações Unidas, através do seu programa para o desenvolvimento.
O objetivo do jogo? Conectar os cidadãos aos políticos que têm poder de decisão, para os ajudar a perceber como realmente a sociedade encara certos assuntos – neste caso, o aquecimento global. O “Mission 1.5” põe as pessoas no lugar dos decisores políticos -transforma-os na pessoa mais poderosa do mundo – e pergunta-lhes o que fariam em relação a uma situação específica. As respostas são transformadas em data e, posteriormente, passadas aos decisores políticos.
As questões podem não ser assim tão simples na vida real, mas, considerando que uma em cada três pessoas joga videojogos, significa que um esforço está a ser feito para ouvir a população.
Todavia, a área de influência dos videojogos não se fica só pelos outros; também nos pode influenciar a nós próprios. E Virgil Abloh é um desses casos. Os seus desenhos sempre tiveram influência da cultura que o rodeia e a sua Playstation não era exceção. Para o designer, a moda tem vindo a ser feita de uma forma muito mais pessoal do que no passado, que se encontrava no ambiente das grandes cidades, como Nova Iorque e Milão. Com o que define ser uma “viragem geracional”, o seu timing correspondeu com a expansão dos videojogos – e, a partir daí, foi só criar e ver onde isso nos levava. “Eu sempre abri a porta do design através da cultura. Não só da moda”, afirma.
Salas de cinema, streaming e o poder de uma boa história
A morte do cinema já tem vindo a ser anunciado há muito tempo, mas talvez haja aqui um problema de nomenclatura. O cinema tem vindo a adaptar-se às novas tecnologias e foi no streaming que encontrou a sua nova casa durante a pandemia – vários filmes forma lançados diretamente nestas plataformas, quando, antes do coronavírus, já tinham um plano de lançamento tradicional definido.
O que realmente pode estar em perigo são as salas de cinema tradicionais. As que restarem, pós-pandemia, vão estar repletas de blockbusters (filmes comerciais de grande orçamento), em detrimento de produções mais pequenas e independentes que vão perder espaço. Este caso é muito preocupante em Portugal, segundo Ana Rocha de Sousa, onde os artistas já vivem muito de subsídios do Estado – se lhe tirarem as salas de cinema, a situação fica complicada.
A incerteza é o que mais preocupa a realizadora do filme “Listen”, pré-candidato ao Oscar de Melhor Filme Internacional por Portugal. Apesar de achar as plataformas de streaming uma boa opção para manter o cinema vivo durante a pandemia, estas não são a solução.
Para além de questões económicas – estas plataformas não dão tanto lucro como as salas de cinema tradicionais -, o streaming também é encarado como uma “versão barata” das últimas, o que limita uma produção orientada mais para o detalhe, para o perfecionismo. Mas acima disto tudo está a experiência. Para Ana Rocha de Sousa, nada substitui a sensação de estar numa sala de cinema, de se perder numa tela gigante e sentir os calafrios provocados pelo sistema de som. É algo essencial, e o seu próprio filme, “Listen”, não pode ser visto de outra forma – pelo menos, na primeira vez.
Fotografia: Listen (2020), dir. Ana Rocha de Sousa
A realizadora não foi assim tão afetada pela pandemia enquanto fazia o filme. Quando esta chegou, a sua longa-metragem já estava na fase de edição e, por isso, confessa que não tem muita experiência em realizar durante um quadro pandémico.
No entanto, sabe o que é festejar uma conquista durante o mesmo. Há sempre um sentimento agridoce ao imaginar como seria conquistar prémios e reconhecimento noutra altura, mas admite que este é um sentimento superficial. “Eu não posso ser idiota e ignorar o que as outras pessoas estão a sofrer. Se a indústria cinematográfica colapsar, tudo o que eu tenho feito fica sem propósito”.
E Ana Rocha de Sousa tem feito muito. Com “Listen”, a realizadora quis expor os processos de adoção forçados que acontecem no Reino Unido, num quadro filosófico entre a relevância das regras e como estas podem ir demasiado longe. E esta questão está presente em todas as suas personagens – até naquelas que apenas as seguem. É um colidir de realidades que a cineasta espera levar a uma conversa sobre a validade destas leis e, possivelmente, a uma mudança.
É por esta razão que Ana continua a fazer filmes e espera poder fazê-lo por muito tempo. “Estou à espera de melhores dias para indústria do cinema”, admite.
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