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Web Summit: Quando a humanidade e a tecnologia se fundem

No ano em que a tecnologia tem um papel preponderante no combate à pandemia, a próprio Web Summit foi realizada com recurso à mesma. A área não pôde deixar de ser debatida e, com destaque para a Inteligência Artificial, o futuro promete.

Ana La-Salete Silva (texto)


Fotografia: Adobe Stock


Uma dinâmica “interessante” entre tecnologia e governo – foi este o tema abordado na conversa entre Palmer Lucy, fundador da empresa de tecnologia militar Anduril, e David Pierce, jornalista da Protocol. Esta relação entre governo tem vindo a ser deteriorada na última década, uma altura em que o desenvolvimento de Inteligência Artificial (ou AI, do inglês “artificial intelligence”) enfrenta, na opinião de Lucy, “demasiada regulação”, conservadora e feita no passado.


Neste sentido, não se deve olhar para o presente, mas sim para o que a AI irá trazer no futuro, estabelecendo leis consensuais que tenham isso em conta. E o futuro traz consigo inovação – este ano, o Web Summit, também ele realizado com recurso à tecnologia, trouxe consigo uma prospetiva do que poderão ser os próximos passos nesta área.

Vai de condutores de táxi automáticos a tradutores para atender clientes. Passa por assistentes pessoais com rosto e leite que nasce de maçãs e repolhos. No mundo da tecnologia e da Inteligência Artificial, “revolução” é a palavra-chave.


Tecnologia contra a desigualdade


“Tecnologia pela equidade social” é qualquer tipo de tecnologia que preencha as falhas nas necessidades humanas. Atualmente, até um smartphone consegue pertencer a este grupo, tendo em vista um contexto pandémico em que muitas crianças obtêm a sua educação por este meio – até o Zoom cresceu além do imaginável pelo seu criador, Eric Yuan, que destacou este facto também na Web Summit e espera, a partir de agora, que se instale um modelo híbrido de trabalho presencial e remoto - benéfico para as pessoas e para o ambiente -, do qual a aplicação faça parte.


Este tipo de tecnologias foram tema de debate numa das muitas mesas-redondas que ocorreram ao longo dos três dias, acolhida por Cody Friesen, fundador da SOURCE Global.

Constatou-se que existe uma falta de investimento em criar igualdade social através da tecnologia – nesta mesa-redonda, foi discutido o quão difícil é convencer os governos e empresas a investir em organizações que desenvolvem este tipo de trabalhos, dado não se tratar de uma tendência, mas sim de algo a longo prazo, numa era de resultados imediatos.


Uma solução passaria por introduzir na sociedade uma espécie de “pensamento geracional”, de forma a que se semeie frutos para as gerações vindouras os colherem. A comunicação e marketing internos de uma empresa também podem ser úteis – a partir do momento em que a tecnologia permite que todos os trabalhadores transmitam a sua opinião, os líderes podem mudar de ideias.


Apesar destes impasses, novas tecnologias têm elevado a humanidade um pouco por todo o lado. Alguns exemplos são o estudo remoto, numa altura em que garantir o direito fundamental à educação está de mãos dadas com a tecnologia, o desenvolvimento da agricultura, a globalização da investigação científica quando o esforço conjunto dos investigadores se torna cada vez mais crucial, e até o maior acesso a competências e plataformas que permitem a criação de negócios e projetos pessoais. Outro grande desenvolvimento mencionado reside na área da deslocação e transportes, também abordada em outras talks da Web Summit.


Uma delas foi de Amnon Shashua, que, ao apresentar uma nova forma de nos deslocarmos, começou por explicar que há dois tipos de produto: um é sofisticado, mas com baixa precisão; o outro é preciso, mas nada sofisticado. E, para o CEO da Mobileye, condução autónoma consegue ser ambos – precisão e sofisticação.


A verdade é que nada soa mais a deslocação luxuosa do que um veículo que se conduz a si mesmo. Contudo, Amnon Shashua destaca os desafios que o desenvolvimento deste modelo traz.


Além de garantir que um carro autónomo é credível aos olhos do consumidor – o que, segundo Shashua, passa pelo desenvolvimento de mapas em HD que mostrem que o veículo se orienta de forma independente -, também é necessário criar regulação para o caso de, por exemplo, acidentes acontecerem.


Neste momento, o foco da empresa reside no desenvolvimento de assistentes de condução que podem levar, posteriormente, à condução autónoma. Outro investimento é a criação de robot taxis, um passo mais simples de tomar dada a facilidade em criar regulação que os carros autónomos não garantem.


Depois da língua, o rosto digital


Para Amnon Shashua, estamos no meio de uma revolução em termos de AI e novas barreiras estão a ser constantemente ultrapassadas. A nova fronteira é, agora, a língua e criar um entendimento natural da mesma.

Conquistar a língua é ficar mais perto da globalização da Inteligência Artificial e o CEO e fundador da Unbabel parece ter alcançado parcialmente esse objetivo.


Para Vasco Pedro, independentemente de tentativas como o Esperanto, criar uma língua universal é impossível. Tal acontece porque a forma como falamos é um fator crucial à criação de grupos. Falar a mesma língua é pertencer ao mesmo grupo e, portanto, ajuda à criação de uma melhor ligação afetiva. Mas, segundo afirma o empresário português, “ninguém no mundo fala a mesma língua ao mesmo tempo”, o que se pode tornar num problema – principalmente para o serviço ao cliente.


Utilizar Inteligência Artificial na tradução é relativamente fácil, mas a experiência do consumidor “não se traduz tão facilmente como línguas”. Assim, a solução é um modelo híbrido que combine AI e pessoas.


Vasco Pedro explica que Inteligência Artificial ainda não tem a habilidade de entender as nuances de uma conversa, o seu contexto, algo do qual o atendimento ao cliente vive. Combinar o conhecimento de línguas que a AI consegue providenciar com as capacidades humanas serve como um aumento do potencial que o profissional de costumer service pode ter. Um desenvolvimento deste tipo pode ajudar o consumidor a aproximar-se de quem lhe providencia o serviço, e facilita o exercício do próprio profissional, que atende vários clientes ao mesmo tempo e de forma rápida.


Com a globalização da Inteligência Artificial, uma realidade em que cada um de nós tem o seu AI pessoal não está, de todo, longínqua. Lars Buttler, da AI Foundation, define este tipo de tecnologia como “uma extensão” digital da pessoa, que não precisa de descanso. Para o empresário, a criação de conhecimento não pode parar, e a sociedade deve aceitar isso antes que tecnologias como esta sejam implementadas. Butler afirma ainda que a Inteligência Artificial deve ser usada para o bem e não com propósitos “subsequentes”, como é o caso dos deep fakes, cada vez mais avançados e difíceis de distinguir.


Contudo, Nina Schick, que se juntou a Hao Li, cofundador e CEO da Pinscreen, no Canal 4 do Web Summit, defende que deep fakes vão trazer uma revolução no que toca à comunicação humana e democratizá-la, a partir do momento em que um investimento de milhões vai poder, em breve, estar nas mãos de qualquer pessoa.


Deep fakes inserem-se na área dos media sintéticos, que, segundo a autora do livro “Deepfakes: The Coming Infocalypse”, constituem qualquer tipo de media gerado por AI. É um conteúdo convincente, sendo que nem o olho humano consegue averiguar a sua falsidade. Isto torna-o “numa das melhores ferramentas para a desinformação”, mas a verdade é que já nos encontramos na era da (des)informação – os deep fakes constituem apenas mais um passo e, sem soluções para parar este fenómeno, é necessário que a sociedade comece a acompanhar mais rapidamente o desenvolvimento tecnológico, criando regulação que realmente abranja estes avanços. “Não podemos apenas deixar as pessoas fixes contruir esta tecnologia e não pensar também nas suas implicações”, afirma Nina.


Mas nem tudo é negativo: este tipo de tecnologia vai mudar as nossas vidas nas mais pequenas coisas – desde mudar aparências em reuniões Zoom ou criar avatares digitais para quem não tenciona aparecer de todo. Hao Li acrescenta ainda que a Pinscreen está a tentar criar um humano digital com o qual se possa interagir, um avanço de assistentes como a Siri ou a Alexa, com o qual podemos ver, pela primeira vez, uma representação visual do comportamento humano no que era, antes, um simples assistente de voz. Substituir videochamadas por uma espécie de teletransporte em que se cria, através de hologramas, uma presença visual realista da nossa comunicação é também uma realidade que Li anseia ver. Até na indústria do cinema e do teatro, a forma como os atores vão trabalhar será diferente.


Segundo Nina Schick, um grande passo está prestes a ser dado na integração de media sintéticos nas nossas vidas, que “vai mudar o que significa ser humano nesta era”. Na opinião de Hao Li, “vai ser menos autêntico, mas benéfico para nós”.


Saúde e alimentação na era da Inteligência


Os três dias durante os quais a Web Summit transmitiu conteúdo levam-nos a concluir que os benefícios referidos por Li não passam apenas pelo trabalho ou pela comunicação.

Atualmente, até a nossa alimentação pode provir de inteligência artificial – é a NotCo, patrocinada por Jeff Bezos, que torna isto possível. Defendendo que vivemos num sistema que “prejudica os humanos e o ambiente”, o fundador, Matias Muchnick, explica como é possível mudar a forma como comemos.


O primeiro passo é entender do que é realmente feita a comida, numa perspetiva química. Trata-se de perceber que moléculas constituem cada tipo de alimento e de que forma é que elas interagem para criar os sabores que distinguimos. Um algoritmo de Inteligência Artificial criado pela start-up, o Giuseppe, faz esse trabalho, ao procurar as combinações de plantas que, molecularmente, podem criar exatamente esses sabores.


Para exemplificar, Muchnick relata como é que a empresa já conseguiu criar leite vegetal: descobriram que maçãs e repolhos tinham as mesmas moléculas encontradas no leite de vaca, juntaram estes dois alimentos e, “pescando” os constituintes químicos comuns ao leite, conseguiram criar um produto exatamente com a mesma cor, consistência e sabor. O mesmo se aplicou para a criação de outros alimentos por parte da empresa, como a maionese – tudo isto sem uma réstia de produtos animais, na tentativa de quebrar um sistema que o fundador define como “obsoleto”.


Mas este não é o único sistema que a tecnologia promete fazer renascer. No panorama da saúde, a esperança reside na capacidade de detetar e utilizar os pequenos pilares microscópicos que constituem o corpo humano no tratamento de doenças.

É este o objetivo que os projetos dos quais fazem parte Joshua Ofman (Grail), Austin Che (Gingko Bioworks) e Riki Banerjee (Medtronic) têm em comum, enquanto criam nova tecnologia ou refinam a já existente.


O facto de o corpo humano possuir mais microrganismos hóspedes do que células próprias e o seu papel na regulação pode abrir porta ao seu uso em tratamentos. Um exemplo da sua aplicação, segundo explica Austin Che, é a fenilcetonúria, uma doença genética rara caracterizada por um defeito na enzima que digere fenilalanina. Dar ao paciente micróbios que digiram esta proteína liberta-os facilmente da toxicidade e alivia os sintomas.


Já para Joshua Ofman, estamos “a perder a guerra” contra o cancro, que está prestes a tornar-se na maior causa de morte mundial, o que se pode justificar pela deteção demasiado tardia da doença – mas a Inteligência pode mudar isso. Na Grail, está em desenvolvimento um projeto que consiste em detetar no sangue os primeiros sinais da existência de um cancro.


O conceito é simples: o cancro é causado por células mutadas que, ao morrerem, vão libertando restos de material genético para o sangue. Com as novas tecnologias, é possível identificar esse material genético, sequenciá-lo e identificar a frequência com que este é libertado, para, deste modo, se descobrir atempadamente um possível cancro e a sua localização. O quão cedo isto é possível “depende do cancro”, segundo explica Ofman, já que cancros de desenvolvimento lento e menos agressivos são mais difíceis de detetar. Mas, na sua opinião, o panorama atual é que não existe sequer a capacidade de fazer este tipo de diagnósticos por parte do sistema de saúde, logo, “mesmo que a sensibilidade seja pouca, já é um progresso”.


Por outro lado, Riki Banerjee conta que a Medtronic está a refinar tecnologias já existentes de estimulação cerebral profunda, de forma a que estas passem a ser de uso contínuo e se adaptem ao dia-a-dia dos pacientes, melhorando a sua qualidade de vida.

Para Joshia Ofman, o sistema de saúde atual falha ao focar-se no tratamento, quando a luz ao fundo do túnel reside na prevenção e na deteção. Estes projetos são apenas três peças do puzzle que constitui o caminho rumo a essa mudança – e o investimento na tecnologia, tal como reforçado ao longo de todo o Web Summit de 2020, é, hoje, mais importante do que nunca.

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