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A Maioria sub-representada

Atualizado: 14 de jan. de 2021

São a única maioria que é tratada como minoria. Num país cheio de mulheres, os homens continuam a agarrar-se ao poder com garras e dentes e a ocupar a maioria dos lugares nas Assembleias e executivos do país. Contudo, o futuro promete ser diferente – vem de forma lenta e insegura, mas as vozes femininas ouvem-se cada vez mais alto.


Ricardo Jesus Silva (texto e infografia)



“Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, (...)”


A lista continua e é preciso descer até ao Artigo 13 da Constituição Portuguesa para encontrar. Representa o direito humano mais básico de todos – o Princípio da Igualdade. A 2 de abril de 1976, o documento legislativo supremo de Portugal foi aprovado pela Assembleia Constituinte - mais propriamente por 229 homens e apenas 21 mulheres. A verdade é que, embora a Revolução de abril prometesse a igualdade para todos os cidadãos, as mulheres continuam a batalhar todos os dias para a tentar alcançar – e esta lei parece não passar apenas de um cravo nas suas armas.


Desde essa data, Portugal viu o número de mulheres no espectro político crescer, mas não da forma galopante que se esperava. As mulheres foram quebrando as barreiras culturais e sociais que lhes eram impostas e assumiram os seus lugares de direito dentro das forças políticas, culminado naquela que foi uma das maiores conquistas para a representatividade feminina: a lei da paridade.



O aparelho de dentes


Para Catarina Marcelino, Presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, este mecanismo de ação positiva, que impõe quotas de género nas listas das forças partidárias, é uma espécie de “aparelho de dentes” – está aqui para retificar as injustiças históricas sofridas pelas mulheres, que levaram à diferenciação do seu ponto de partida, quando comparado com os homens. “Ainda que, hoje em dia, as oportunidades sejam iguais, as mulheres sentem no seu quotidiano que têm de provar redobradamente aquilo que são as suas valências”, afirma a deputada do PAN da atual legislatura, Inês de Sousa Real, em entrevista ao SATÉLITE.


Quando a lei foi instaurada, em meados de 2006, as listas apresentadas às eleições legislativas, autárquicas (excluía as Assembleias de Freguesia) e europeias apenas tinham de assegurar a representação mínima de 33,3% de cada um dos géneros, devendo haver uma interposição dos mesmos, aquando da ordenação da lista.


Para Carla Cerqueira, investigadora das relações de género e média na Universidade do Minho, a representação era, de certa forma, “redutora”, por se encontrar muito longe do que era a percentagem de população feminina no país – segundo a PORDATA, as mulheres representavam 53% dos residentes em Portugal, em 2019, enquanto os homens ficavam-se pelos 47%.


E não é por estarem em maioria que as mulheres não podem ser uma minoria, por mais contraditório que possa parecer. Segundo a investigadora, as mulheres “continuam a ser uma minoria social, porque, a forma como nós devemos pensar o que é uma minoria, é alguém que não é reconhecido da mesma forma, de forma equitativa. É alguém que, em muitas situações, é homogeneizada, vista pelo seu grupo e não pela sua individualidade.”


A lei de “um terço”, como ficou caracterizada a primeira versão da lei da paridade, pode mesmo ter acabado por prejudicar as mulheres no ramo político, segundo Catarina Rocha Ferreira. A deputada do PSD afirma que “quando [as listas partidárias] são feitas por estruturas que sejam mais masculinas”, estes “aproveitam-se da lei das quotas para fazer uma lista de dois lugares homens, um lugar mulher. Isto é o mínimo que as quotas exigem.”


As aversões e resistências à lei da paridade ficaram denotadas desde o início e envolveram partidos da esquerda e da direita parlamentar. Enquanto o BE e o PS foram as forças partidárias que impulsionaram a lei das quotas, os seus amigos de esquerda, PCP-PEV - com quem formariam a famosa “Geringonça” no XXI Governo Constitucional - votaram contra, ao lado dos partidos de direita. As justificações foram diferentes: enquanto o PCP afirmava que o que devia definir as listas não era o género ou sexo, mas sim a sua opção ideológica; o PSD e o CDS invocaram, maioritariamente, a questão da meritocracia.


Para Inês de Sousa Real, falar de meritocracia, em detrimento daquilo que são as quotas, “não é um debate sério”. “Os homens já começaram num ponto de partida diferente, quando tiveram mais oportunidades. (…) A história tem sido feita e tem deixado para segundo plano as mulheres”, afirma a deputada.


As resistências mantiveram-se com o passar dos anos e, em 2019, quando se voltou a debater a lei da paridade no Parlamento – desta vez, o objetivo era elevar a representação mínima de um género para 40% e alargar o sistema de quotas para as Assembleias de Freguesia -, várias caras familiares continuaram a votar contra, mas houve algumas surpresas.

O voto à direita fragmentou-se. Apesar da maior parte dos deputados do CDS ter votado contra, quatro abstiveram-se, e a Presidente do partido, Assunção Cristas, juntamente com Isabel Galriça Neto, deu o seu parecer positivo à medida. Já no PSD, a mudança foi total. Apenas dois deputados abstiveram-se, enquanto o resto da sua força parlamentar juntou-se ao PS e ao BE.


O PCP continuou com a sua ideologia e os seus deputados votaram, unanimemente, contra a proposta. O PAN, o partido estreante nessa legislatura, votou a favor.


Mas qual foi o real impacto das quotas de género nos diversos atos eleitorais do país?



As Mulheres na Assembleia da República: uma montanha quase escalada


Fotografia: Nuno Ferreira Santos


Com a aprovação da Constituição de 1976, a Assembleia Constituinte foi dissolvida e novas eleições foram convocadas para formar a primeira Assembleia da República do país. O número de pessoas que se dirigiram às urnas impressionaria qualquer pessoa nascida a partir dos anos 90, mas o mesmo não se pode dizer do número de mulheres eleitas.


Num universo de 263 lugares disponíveis, apenas 15 foram ocupados por mulheres – menos seis do que se tinha registado na composição inicial da Assembleia Constituinte. Aliás, para os portugueses poderem ver um número maior do que esse, teriam de esperar quase 20 anos – em 1995, 28 mulheres sentaram-se como deputadas na Assembleia da República.

Mesmo assim, as mulheres continuaram a representar uma parte ínfima da Assembleia da República, correspondendo ao que acharíamos, agora, uns míseros 12%.



O caminho foi sendo feito a ritmos diferentes até 2005. Se por um lado, o maior crescimento de sempre no número de deputadas na AR, entre 1995 e 1999, fazia crer que as mulheres estavam, finalmente, a conquistar o seu lugar de direito no espectro político-partidário, os crescimentos tímidos das duas seguintes legislaturas preconizavam um caminho demorado para a igualdade de representação e comprovavam que este era tudo menos exponencial – ou até mesmo natural.


Com a instauração da lei da paridade, os problemas de representação das mulheres na AR não foram resolvidos, de todo. Nas primeiras eleições legislativas, em que as quotas de género entraram em cena – alguns partidos tiveram dificuldade em arranjar mulheres para os cargos, principalmente os de direita: conservadores, tradicionalistas e com fortes candidatos masculinos, que já faziam parte dos seus quadros há muitos anos -, o número de mulheres eleitas ficou muito abaixo das quotas estabelecidas. Foram 27,4% contra os 33,3% estabelecidos pelas quotas – e o mesmo aconteceu até 2019.


Para Beatriz Gomes, deputada do Bloco de Esquerda, isto tem uma justificação. “Muitas vezes, estas mulheres não são as cabeças de lista, principalmente nos círculos em que se elege poucos deputados, o que faz com que se elejam mais homens do que mulheres”.


As mulheres ficam, então, regaladas para lugares ilegíveis, como explica Inês de Sousa Real. “Se optarmos por pôr no lugar elegível um homem, a mulher nunca vai lá chegar. Existe efetivamente uma cultura interna que não proporciona que as mulheres estejam presentes ou sejam eleitas.”


A solução pode passar por criar listas maioritariamente femininas – uma espécie de discriminação positiva. E, aqui, podemos dar o exemplo do PAN. Em 2019, a sua lista às legislativas era composta por 164 mulheres e por apenas 129 homens (mesmo assim, havia uma maior paridade, neste caso, do que em qualquer ano na Assembleia da República).


Nessa legislatura, o PAN tornou-se o partido com uma maior percentagem de mulheres de toda a Assembleia, se excluirmos os que elegeram apenas um deputado. O segundo seria, surpreendentemente, o CDS-PP, que tinha visto a sua representação parlamentar feminina quase duplicar em relação à legislatura anterior. No entanto, com a saída de Assunção Cristas do Parlamento e respetiva substituição por parte de João Gonçalves Pereira, ficou, novamente, regalado a uma maioria parlamentar masculina.


A legislatura introduzida em 2019 foi uma das mais históricas para o feminismo. Com a lei da paridade a subir até aos 40%, nunca tantas mulheres tinham pisado o Parlamento ao mesmo tempo (89). E, com a saída de deputados para o executivo de António Costa, – entre outras alterações – o número elevou-se mesmo, em 2020, para as 91 deputadas.


Mas, se por um lado a representação feminina entre deputados encaminha-se para a paridade, como é que se encontra a situação no outro lado do plenário?



As Mulheres no Governo: as manchas dos papéis de género


Fonte: TVI24


Enquanto as portas da Assembleia da República abriram-se para as mulheres com a ajuda fulcral das quotas de género, o mesmo não se pode dizer dos executivos que regeram a vida dos portugueses nos últimos 44 anos - prova disso é só ter havido uma primeira-ministra em Portugal.


Sem leis de paridade específicas para as ajudar, as mulheres tiveram de forçar a sua entrada no jogo executivo (o mais importante da vida política).


A verdade é que, em termos percentuais, o número de mulheres presente na composição inicial dos Governos foi quase sempre inferior àqueles que definiram a Assembleia da República e, durante vários anos, não se conseguiu estabilizar e encontrar um crescimento certo e seguro.



Não é preciso recuarmos décadas para encontrar um Governo em que o número de mulheres no executivo fosse inferior aos dois dígitos. Em 2015, o executivo liderado por Pedro Passos Coelho era composto por apenas 9 mulheres, num universo de quase 50 integrantes – o número mais baixo desde o XIV Governo Constitucional.


Este executivo acabaria por ser exonerado passados apenas 16 dias, pelos parceiros partidários que acabaram por criar a “Geringonça”. A solução encontrada à esquerda trouxe mesmo aquele que foi o mais feminista dos executivos até à altura – mais de 22 mulheres marcaram presença no Governo liderado por António Costa, que repetiria o feito quatro anos depois, desta vez com 26 rostos femininos nas suas fileiras.


Até chegarmos a este ponto (que mesmo assim não se pode considerar de viragem), as mulheres tiveram de lidar, durante anos, com uma representação subalterna no posto de comando mais importante do país.


Durante os primeiros Governos Constitucionais, a presença feminina era residual e impossibilitava que se respondesse às necessidades e desejos de emancipação das mulheres da época. Aliás, durante aquele que foi o II Governo Constitucional, nenhuma mulher conseguiu garantir um assento no outro lado do plenário – foi a única vez que isso aconteceu na nossa pequena história democrática. Este executivo, tal como o XX, não durou muito tempo. Durante sete meses, a vida política portuguesa foi regida apenas por homens, após um acordo que nunca se viria a repetir, a nível nacional, entre o PS de Mário Soares e o CDS de Freitas do Amaral.


Para Beatriz Gomes, tudo isto tem uma explicação histórica. As marcas ditatoriais, bem como a secundarização da educação na vida feminina - aliada a uma sociedade patriarcal -, fizeram com que “as mulheres, durante séculos, fossem deliberadamente afastadas dos lugares de poder”.


E isto fica mais do que comprovado quando analisamos a quantidade de mulheres que foram ministras durante os 46 anos da Assembleia da República. Com as repetições de cargo excluídas, Portugal teve apenas 35 mulheres ministras, enquanto os homens ocuparam esse mesmo lugar quase 500 vezes.



A diferença do ponto de partida, que Inês de Sousa Real falava, é mais do que visível nesta função. Durante os primeiros nove Governos Constitucionais, não houve nenhuma mulher a exercer funções naquele que é o segundo posto mais importante num executivo.


Aliás, a primeira mulher ministra foi indigitada por Cavaco Silva no X Governo Constitucional. Durante os dois governos do ex-Presidente da República, Leonor Beleza ocupou a liderança do Ministério da Saúde, um setor ainda muito ligado ao papel social da mulher como cuidadora.


Por entre Ministérios da Educação, passando pelo Ambiente e Igualdade, teríamos de esperar até ao décimo quinto Governo para vermos uma mulher a assumir um cargo que se desviasse da estereotipização de género. Manuela Ferreira Leite, que futuramente iria presidir o próprio PSD, conquistou o seu lugar à frente do Ministério do Estado e das Finanças, um campo, ainda hoje, associado a rostos masculinos. Desde aí, apenas mais uma mulher segui-lhe os passos: Maria Luís de Albuquerque, curiosamente também ela do PSD.

Com o número de mulheres ministras num caminho de crescimento lento e oscilante durante mais de 35 anos, o boom há muito desejado para a emancipação feminina neste cargo aconteceu com a atual legislatura. 42% dos Ministérios são liderados por mulheres, o que corresponde a um total de 8 pastas de setores-chave da sociedade envergadas por pessoas do sexo feminino – um número muito superior ao registado, atualmente, na Europa (31,4%).



As Mulheres no Parlamento Europeu: um falso progressismo?


Fotografia: Nuno Pinto Fernandes/Global Images


É no Parlamento Europeu que as mulheres portuguesas erguem, neste momento, a bandeira feminina mais alto, mas ainda com vários metros por escalar para chegarem ao topo da montanha da paridade.


Uma tentativa de mostrar um falso progressismo a nível internacional? Um menor interesse do patriarcado instalado nos seios partidários sobre o Parlamento Europeu? Marisa Matias, eurodeputada por parte do Bloco de Esquerda, em entrevista ao SATÉLITE, não sabe exatamente a resposta, mas afirma que “pode haver, aí, um nível de disputa diferente entre partidos” que justifique o facto de haver, nas europeias, “mais partidos a incluir a paridade total” nas suas listas.


Marisa Matias chegou pela primeira vez ao Parlamento Europeu em 2009, ano em que se elegeu um número de mulheres recorde para o órgão da UE (8 mulheres em 22 eurodeputados) e em que, pela primeira vez, a percentagem nacional ultrapassou a da Europa.



Esta também foi a primeira vez que a lei da paridade influenciou a criação de listas por parte dos partidos para as eleições europeias. O 1/3 mínimo de representação de cada género foi fulcral para impulsionar o papel das mulheres, e, desde aí, o número só tem vindo a aumentar, bem como a diferença, em termos de percentagem, em comparação à média europeia – mesmo com o número de eurodeputados elegíveis por Portugal a diminuir.


Quando chegou ao Parlamento Europeu, a eurodeputada ficou “logo com dossiês de muita importância”, o que lhe permitiu identificar “problemas não ditos, não verbalizados”, escondidos na penumbra e que, apenas viam a luz do dia, porque Marisa identificava-os quando falava com as suas colegas. Por serem mulheres, por serem demasiados novas, demasiado velhas, por terem um certo aspeto ou atitude.


O caminho ainda é longo. Se olharem para trás, as mulheres conseguem ver uma extensa estrada, sem início aparente, cheia de altos e baixos, corpos deitados no chão que um dia lutaram para as mulheres de hoje poderem erguer-se. Se olharem para o lado, podem ver um suporte frágil, cada vez mais ameaçado pelo recrudescimento de políticas machistas e patriarcais, mas que se mantém com a força de vontade das mulheres que continuam a lutar, todos os dias, para alcançar a igualdade.


Na sua frente, o caminho ainda está por construir, mas uma luz brilha ao fim do túnel. É dever de todos nós mantê-la a latejar e não a deixar esmorecer, para podermos assegurar uma democracia saudável e representativa. Ainda faltam dar muitos passos – em algumas matérias, só começaram a ser dados há pouco tempo -, mas a paridade entre géneros é cada vez menos uma utopia.

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